Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
“A Quem Pertence o Corpo?”: Propriedade Corporal, Cinema e os Dilemas Éticos à Luz do Direito – O cinema frequentemente funciona como um espelho simbólico da realidade, revelando tensões e questões que o Direito ainda busca resolver. A série coreana Além do Direito (법을 넘어서) ilustra bem essa conexão, mostrando que o Direito não vive isolado da moral, da ética e dos dilemas humanos. Em especial, nos desafia a refletir sobre situações-limite envolvendo acidentes trágicos, decisões de vida ou morte e a natureza jurídica do corpo humano. Neste artigo, proponho uma análise jurídica-filosófica a partir de dois casos instigantes, fundamentados na legislação brasileira, que ilustram essa complexidade.
O Caso do Braço Arrancado: Propriedade Corporal, Restituição e os Limites do Direito
Imagine a seguinte cena: um homem sofre um acidente de trânsito enquanto atravessa a faixa de pedestres. Com o impacto, um dos seus braços é decepado e cai na via. Imediatamente, um transeunte recolhe o membro e foge com ele. O homem, ao se recuperar parcialmente, propõe uma ação judicial pedindo a restituição do próprio braço. Seria isso juridicamente possível? A quem pertence uma parte do corpo humano separada do todo?
Essa situação, por mais surreal que pareça, levanta dilemas fundamentais sobre a natureza jurídica do corpo humano, limites da propriedade, dignidade da pessoa humana e a função do Direito na regulação de situações-limite. Vamos analisar.
Corpo Humano: Objeto de Direito ou Sujeito de Proteção?
O Direito brasileiro não reconhece o corpo humano — vivo ou morto — como objeto de propriedade no sentido clássico, isto é, como bem que possa ser vendido, trocado, penhorado ou usucapido. A Constituição Federal assegura a dignidade da pessoa humana (rt. 1º1, III) e a inviolabilidade do direito à vida e à integridade física e moral (art. 5º,2 caput e incisos), o que impede a comercialização ou disposição livre de partes do corpo, mesmo com o consentimento do titular.
Segundo a Lei nº 9.434/973, que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, o uso de partes do corpo humano está condicionado a fins terapêuticos ou científicos, sem fins lucrativos e com consentimento prévio, nos casos de doadores vivos.
Ou seja: nem mesmo o titular do corpo pode vender partes dele, o que sugere que o Direito não confere ao indivíduo um direito de propriedade plena sobre si mesmo, mas sim um direito de personalidade, cuja natureza é extrapatrimonial e indisponível.
Ação de Restituição: Cabe no Caso?
A ação de restituição (ou “reivindicatória”) é prevista no Código Civil (art. 1.2284 do CC) e exige três requisitos básicos:
- Propriedade comprovada do bem;
- Perda da posse do bem;
- Detenção injusta do bem por terceiro.
Mas como enquadrar um braço decepado como um “bem” passível de reivindicação judicial?
A resposta não é simples. Se considerarmos o braço como parte integrante da personalidade, então o fundamento jurídico não seria o direito de propriedade, mas sim a violação da dignidade da pessoa humana, da integridade física, ou até mesmo do direito à memória e ao luto (no caso de partes humanas post mortem).
A jurisprudência brasileira, quando confrontada com casos envolvendo restos mortais, tecidos ou órgãos, costuma tratar essas situações com base nos direitos da personalidade — não como litígios patrimoniais. Por exemplo, decisões relacionadas a uso indevido de cadáveres por instituições científicas, ou sobre o direito de sepultar partes do corpo de entes falecidos, são resolvidas com base na ofensa moral, não na propriedade.
Afinal, Quem é o Dono do Braço?
Do ponto de vista jurídico, é difícil sustentar que alguém seja “proprietário” de uma parte do próprio corpo separada do todo, sob pena de abrir espaço para práticas vedadas pela ordem pública — como o comércio de órgãos, o consentimento à automutilação ou a contratualização do corpo humano.
Por outro lado, há um interesse legítimo do indivíduo na recuperação de parte de seu corpo, tanto por razões médicas (reatamento cirúrgico, exame pericial, etc.) quanto psicológicas ou simbólicas. Esse interesse poderia ser protegido por outros instrumentos jurídicos, como:
- Ação de obrigação de fazer para devolução de bem de valor simbólico;
- Tutela de urgência para preservação do material biológico;
- Ação indenizatória por danos morais, caso haja recusa ou desaparecimento da parte corpórea.
Possíveis Enquadramentos Jurídicos no Direito
| Hipótese | Fundamento Jurídico |
|---|---|
| Pretensão de reaver o braço para fins médicos | Direito à saúde, dignidade da pessoa humana, tutela de urgência |
| Pretensão de enterrar o braço | Direito à memória e ao luto |
| Pretensão de impedir uso indevido do braço (exposição, estudos sem autorização) | Direitos da personalidade, proteção post mortem |
| Alegação de subtração do braço com dolo | Crime de furto de coisa alheia móvel (art. 2125 do CP), com debate sobre tipicidade |
Entre o Direito e o Absurdo
O caso do braço arrancado e furtado lança luz sobre os limites do discurso jurídico diante do corpo humano. Se, por um lado, o senso comum grita que “o braço é dele”, o Direito pondera: não se trata de uma coisa qualquer. Não há plena disponibilidade, nem liberdade total para tratá-lo como um bem patrimonial.
A restituição, nesse caso, não deve ser tratada como uma simples ação reivindicatória. Mais apropriado seria acionar fundamentos constitucionais e ético-jurídicos voltados à proteção da dignidade humana, à saúde e à integridade física.
E você, leitor(a)?
Se o braço não é “propriedade” no sentido tradicional, mas também não é “coisa sem dono”, como o Direito deve lidar com partes do corpo separadas involuntariamente da pessoa? Estaríamos diante de um “bem sui generis”, merecedor de um regime jurídico próprio?
A Constituição Federal, no a, afirma a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Leis específicas, como a Lei de Transplantes (Lei nº 9.434/19976 (Lei de Transplantes) e a Lei nº 10.406/20027 (Código Civil), reforçam que órgãos, tecidos, membros e fluidos corporais não podem ser comercializados ou apropriados como mercadoria.
E a posse?
Embora o braço não seja “coisa” no sentido jurídico tradicional, o Direito pode proteger interesses legítimos relacionados à integridade e dignidade da pessoa. A posse, mesmo sobre algo não patrimonial, pode gerar tutela possessória (art. 1.2108 do CC). Além disso, a conduta do terceiro que retira o braço sem autorização constitui violação grave à dignidade e à integridade do acidentado — possivelmente configurando crime.
Aspectos penais
Do ponto de vista criminal, se o membro tivesse sido retirado de um cadáver, poderia haver crime de vilipêndio a cadáver. Como a vítima estava viva, configura-se lesão à integridade física e à dignidade, além de apropriação indébita e potencial dano moral, dada a situação de vulnerabilidade.
O caso do braço arrancado nos leva a uma reflexão profunda sobre os limites do conceito de propriedade, especialmente quando aplicado ao corpo humano. Se, tradicionalmente, a propriedade não se estende às partes do corpo, o Direito assegura a proteção da dignidade, integridade física e autonomia da pessoa — valores fundamentais do ordenamento jurídico.
Dessa forma, a restituição do braço não se basearia em direitos patrimoniais, mas na tutela da pessoa enquanto sujeito de direitos, reforçando a centralidade da dignidade humana no Direito brasileiro.
Referências Legais
- Constituição Federal, em seu art. 1º, III – https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10731879/inciso-iii-do-artigo-1-da-constituicao-federal-de-1988 ↩︎
- art. 5º, caput e incisos https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10641516/artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988 ↩︎
- Lei nº 9.434/97 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm ↩︎
- art. 1.228 do CC – https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10653373/artigo-1228-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 ↩︎
- art. 212 do CP – https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10612070/artigo-212-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940 ↩︎
- Lei nº 9.434/1997 (Lei de Transplantes) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm – ↩︎
- Lei nº 10.406/2002 (Código Civil) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm ↩︎
- art. 1.210 do CC – https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10654625/artigo-1210-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 ↩︎
Vimos que você gostou e quer compartilhar. Sem problemas, desde que cite o link da página. Lei de Direitos Autorais, (Lei 9610 de 19/02/1998), sua reprodução total ou parcial é proibida nos termos da Lei
