Caso Evandro: Quando a Quebra da Cadeia de Custódia

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O sistema de justiça criminal brasileiro enfrenta, há décadas, o desafio de equilibrar o dever de punir com a garantia da verdade processual e o respeito aos direitos fundamentais. O “Caso Evandro”1, ocorrido em 1992, em Guaratuba (PR), é um dos episódios mais emblemáticos dessa tensão — um caso que uniu drama social, falhas processuais e, recentemente, a consagração da revisão criminal como instrumento de correção de erros judiciários.

Em 9 de novembro de 2023, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) absolveu Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira, reconhecendo que as condenações se basearam em provas ilícitas produzidas sob tortura. A decisão evidenciou, entre outros pontos críticos, a quebra da cadeia de custódia e a nulidade de provas contaminadas desde a origem.

O Caso Evandro e as irregularidades processuais

Evandro Ramos Caetano, de apenas seis anos, desapareceu em abril de 1992. As investigações culminaram em acusações de ritual macabro, envolvendo pessoas influentes da cidade. Ao longo dos anos, o caso gerou cinco julgamentos (1998, 1999, 2004, 2005 e 2011), marcados por denúncias de tortura, nulidades e inconsistências probatórias.

A revisão criminal julgada em 2023 nº 0046867-64.2022.8.16.0000reconheceu que as confissões apresentadas pelos acusados foram obtidas sob violência física e psicológica, sem observância do contraditório e da ampla defesa, violando o art. 5º, incisos2 III, LXI, LXII e LXIII, da Constituição Federal. Como afirmou o desembargador Xisto Pereira em seu voto:

“As confissões dos acusados, por terem ocorrido somente na fase extrajudicial, não serviriam para, isoladamente, sustentar decretos condenatórios, visto que não foram produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.”

A quebra da cadeia de custódia como elemento central

O caso revelou falhas profundas na preservação, controle e documentação das provas. A posterior descoberta de fitas cassete contendo gravações inéditas — não inseridas no processo original — evidenciou a ruptura da cadeia de custódia.

Conceito jurídico-pericial

A cadeia de custódia, prevista no art. 158-A do Código de Processo Penal (introduzido pela Lei nº 13.964/2019 – “Pacote Anticrime”), é o conjunto de procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica da prova, desde sua coleta até o descarte, garantindo sua autenticidade e integridade.

Embora o caso seja anterior à positivação do dispositivo, o princípio da integridade probatória já era exigido pelos fundamentos constitucionais do devido processo legal e pelas normas técnicas periciais.
A ausência de registros sobre a origem, guarda e manipulação das fitas revela contaminação da prova e perda da rastreabilidade, comprometendo qualquer valor jurídico ou pericial.

Efeitos práticos da quebra

A interrupção ou manipulação da cadeia de custódia implica a nulidade da prova, uma vez que não se pode garantir sua fidedignidade nem a correspondência entre o material coletado e o apresentado em juízo. No Caso Evandro, a introdução tardia das gravações — que sequer constavam nos autos originais — tornou impossível assegurar que o conteúdo não tivesse sido adulterado, ocultado ou manipulado.

Em perícias digitais e fonéticas, a rastreabilidade é essencial: qualquer lacuna temporal, física ou documental compromete a autenticidade e, consequentemente, a admissibilidade da prova.

A tortura e a ilicitude das provas

Além da quebra da cadeia de custódia, o caso revelou provas produzidas mediante tortura, violando frontalmente os tratados internacionais de direitos humanos (Convenção contra a Tortura da ONU e Pacto de San José da Costa Rica), bem como o art. 5º, III, da CF/88. Nesse cenário, as confissões obtidas em delegacia jamais poderiam fundamentar condenação — especialmente sem a devida corroboração em juízo.

A decisão da 1ª Câmara Criminal reforça o entendimento de que não há espaço no processo penal para a “prova ilícita por derivação” (art. 157, §1º, do CPP3). A tortura não apenas contamina o ato em si, mas todo o conjunto probatório dela decorrente.

A revisão criminal como instrumento de justiça

A revisão criminal, prevista no art. 621 do CPP4, visa reparar erros judiciários e restabelecer a dignidade de quem foi condenado injustamente. No caso em questão, o Tribunal reconheceu a violação a garantias fundamentais e determinou, inclusive, a indenização civil dos inocentados e dos herdeiros de Vicente de Paula Ferreira, falecido na prisão. A decisão também impôs a responsabilização criminal dos agentes públicos envolvidos nas torturas, reforçando a necessidade de accountability estatal.

Reflexões periciais e jurídicas

Do ponto de vista técnico, o Caso Evandro expõe a importância de práticas periciais documentadas e rastreáveis — tanto em provas físicas quanto digitais. A ausência de um protocolo rigoroso de custódia e o uso de métodos coercitivos para obtenção de confissões são violações que desconstroem a credibilidade do processo penal e produzem injustiças irreversíveis.

A verdade processual não pode ser construída sobre o medo, a opressão e a manipulação de evidências. Como ensina a perícia contemporânea, prova sem cadeia de custódia é apenas narrativa — e narrativa não condena.

A revisão criminal do Caso Evandro é um marco na história jurídica brasileira. Mais do que absolver inocentes, ela reafirma o compromisso do Estado Democrático de Direito com a verdade, a dignidade humana e a ética probatória.

A quebra da cadeia de custódia, somada à prática de tortura e à negligência institucional, demonstra como a falta de rigor técnico e respeito aos direitos fundamentais pode perpetuar injustiças por décadas. A lição que fica é clara: sem integridade da prova, não há justiça possível.

  1. Fonte: https://intranet.tjpr.jus.br/home/-/asset_publisher/1lKI/content/revisao-criminal-inocenta-condenados-do-caso-evandro-/18319 ↩︎
  2. art. 5º, incisos III, LXI, LXII e LXIII, da Constituição Federal https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm ↩︎
  3. art. 157, §1º, do CPP https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10666814/paragrafo-1-artigo-157-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941 ↩︎
  4. art. 621 do CPP https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10614199/artigo-621-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941 ↩︎