Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Em tempos de hiperconectividade, cada clique, mensagem ou acesso deixa rastros digitais que podem se transformar em elementos valiosos de prova. No entanto, a busca pela verdade processual encontra limites constitucionais que protegem direitos fundamentais — especialmente o da privacidade, garantido pelo artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal. Surge, então, o dilema moderno: até onde pode ir o direito de investigar sem violar o direito de resguardar?
A fronteira entre o legítimo interesse probatório e a violação da intimidade
O avanço tecnológico revolucionou a forma de coletar evidências. E-mails, metadados, geolocalização, registros em nuvem e comunicações via aplicativos passaram a integrar a rotina de investigações criminais, trabalhistas e cíveis. Contudo, a celeridade da informação não pode atropelar o devido processo legal. O acesso a dados privados, sem autorização judicial ou consentimento expresso, não apenas viola a privacidade, mas contamina a prova, comprometendo toda a cadeia de custódia.
O artigo 1571 do Código de Processo Penal é claro: provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis. Isso inclui aquelas coletadas sem respeito às garantias legais, ainda que revelem um fato verdadeiro. Em termos simples: não é o resultado que legitima o meio, mas o meio que confere validade ao resultado.
O papel da perícia e da cadeia de custódia digital
- A prova digital exige rigor técnico. Arquivos, áudios, prints e mensagens precisam ser analisados sob critérios de autenticidade, integridade e rastreabilidade.
- O perito digital atua como guardião desses princípios, assegurando que os vestígios eletrônicos não sofram manipulação, adulteração ou perda de contexto.
- A cadeia de custódia, prevista no art. 158-B do CPP, estabelece o percurso documentado do vestígio desde sua coleta até a apresentação em juízo.
- Quando essa cadeia é rompida, perde-se a credibilidade da prova, e o direito de defesa é automaticamente prejudicado.
LGPD e o limite do tratamento de dados em investigações
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/20182) trouxe uma nova dimensão à discussão. Ainda que o tratamento de dados pessoais possa ocorrer para fins de segurança pública ou investigação, isso não significa liberdade irrestrita. A coleta deve ser proporcional, necessária e finalística — ou seja, restrita ao que é essencial à apuração do fato. Não se pode confundir o “direito de investigar” com a “licença para devassar”.
Em investigações privadas, corporativas ou arbitrais, o cuidado é redobrado. O uso indevido de informações pessoais ou comunicações internas pode gerar responsabilização civil, penal e administrativa, especialmente se houver exposição desnecessária ou violação de sigilo profissional.
Privacidade não é obstáculo, é parâmetro
Proteger a privacidade não significa inviabilizar a investigação, mas qualificá-la. Uma prova legítima nasce do respeito aos direitos fundamentais, à metodologia forense e à transparência procedimental. A tecnologia deve ser aliada da verdade, e não instrumento de abuso.
Assim como o médico deve seguir protocolos éticos mesmo diante de uma emergência, o investigador — seja policial, perito ou advogado — precisa respeitar os limites legais mesmo diante de suspeitas graves. A pressa por respostas não justifica a violação da dignidade humana.
O verdadeiro desafio contemporâneo não é descobrir “tudo o que é possível”, mas provar apenas o que é legítimo. A justiça que se constrói sobre provas obtidas com violação de direitos se deslegitima. O equilíbrio entre privacidade e prova exige maturidade institucional, técnica e ética. Investigar é um ato de responsabilidade — e não de invasão.
- artigo 157 do Código de Processo Pena https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10666854/artigo-157-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941 ↩︎
- Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm ↩︎
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