Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Em setembro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou um marco no Direito Processual Penal Digital ao anular uma condenação baseada em “prints” de conversas de WhatsApp, declarando as provas inadmissíveis por ausência de integralidade e rastreabilidade técnica. O caso (HC 1.036.370), relatado pelo ministro Joel Ilan Paciornik1, reforçou a importância da cadeia de custódia e da integridade digital como pilares da justiça em tempos de tecnologia.
A decisão reconhece que, em um cenário em que qualquer imagem pode ser facilmente manipulada, capturas de tela não bastam para provar fatos. Assim como uma joia precisa de certificado e laudo técnico para comprovar autenticidade, a prova digital deve ser verificada, documentada e preservada com rigor técnico, sob pena de nulidade.
O que levou à anulação da condenação
No caso analisado, a polícia apreendeu um celular e apresentou ao juiz apenas prints de conversas supostamente extraídas do dispositivo de um corréu. Não houve registro de como, quando e por quem os dados foram coletados, tampouco se foram preservados de forma íntegra. A ausência de documentação mínima violou a cadeia de custódia, princípio essencial previsto no art. 158-B do Código de Processo Penal e detalhado pela norma técnica NBR ISO/IEC 27037:2013, da ABNT. O ministro Paciornik foi categórico: “prints” sem hash, metadados e documentação técnica são insuficientes e inviabilizam a confiabilidade da prova.
Quatro fundamentos técnicos da prova digital
Baseando-se na ISO 27037:2013, o acórdão destacou quatro atributos que toda evidência digital deve atender: Auditabilidade – Repetibilidade – Reprodutibilidade – Justificabilidade, sem esses elementos, a prova perde seu valor jurídico e científico.
Código Hash: a “impressão digital” dos arquivos
O hash é um identificador único de um arquivo, comparável a uma impressão digital. Mesmo uma mínima alteração – como mudar uma vírgula – gera um hash completamente diferente, fenômeno conhecido como “efeito avalanche”.
O ministro citou precedentes da 5ª Turma do STJ para reforçar que somente o cálculo e a verificação do hash permitem garantir que um arquivo digital não foi adulterado entre a coleta e a análise. Sem ele, não há como assegurar a autenticidade da prova.
Norma Técnica e Cadeia de Custódia
A decisão também destacou a relevância da NBR ISO/IEC 27037:2013, que orienta o manuseio de evidências digitais desde sua coleta até o descarte. Embora não seja lei, a ISO 27037 é reconhecida pelo STJ como “guia essencial de boas práticas”, devendo ser observada por todos os atores da persecução penal.
Diálogo entre Processo Penal e Processo Civil
Em trecho notável, o acórdão promoveu um diálogo das fontes entre os dois ramos do direito, citando o art. 422, §1º do Código de Processo Civil, que exige autenticação eletrônica ou perícia em imagens digitais impugnadas.
O raciocínio é claro:
Se no processo civil – onde as consequências são patrimoniais – já se exige comprovação técnica, no processo penal, que envolve liberdade, a exigência deve ser ainda mais rigorosa.
O ônus da prova é do Estado
A decisão também reafirmou o entendimento consolidado pela 5ª Turma do STJ (AgRg no RHC 143.169/RJ):
“É ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas.”
Ou seja, não cabe ao acusado provar que a prova é falsa, mas ao Estado demonstrar que ela foi obtida e preservada de modo íntegro e verificável.
Um novo paradigma jurisprudencial
Esse julgamento se soma a precedentes recentes – como o AgRg nos EDcl no AREsp nº 2.342.908/MG, relator ministro Ribeiro Dantas – consolidando uma tendência firme: as Turmas Criminais do STJ vêm exigindo rastreabilidade técnica e documentação mínima na produção de provas digitais. A decisão do ministro Paciornik não é um caso isolado, mas sim um marco na evolução da jurisprudência digital brasileira.
O recado do STJ: a era do improviso acabou
O tribunal foi claro: não basta ter dados; é preciso provar que eles são autênticos, íntegros e auditáveis. A prática de anexar capturas de tela sem laudo pericial, sem metadados e sem hash não atende aos padrões mínimos de confiabilidade. Essa mudança de postura marca o amadurecimento do sistema de justiça diante da era digital, exigindo que advogados, juízes, delegados e peritos dominem os fundamentos técnicos da prova eletrônica.
A decisão do STJ é um divisor de águas. Ela estabelece que o rigor técnico não é luxo, mas requisito de legalidade e legitimidade da prova digital. Mais do que anular uma condenação, ela alerta: o processo penal precisa de ciência, não de suposições.
O mundo digital exige que o Direito evolua junto com a tecnologia. A partir de agora, quem atua na persecução penal deve compreender que print não é prova — é apenas o começo de uma investigação técnica que precisa ser devidamente documentada, analisada e validada.
- Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-nov-07/stj-anula-condenacao-por-ausencia-de-integralidade-da-prova-digital ↩︎
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