A Fragilidade Probatória das Gravações de Body Cams Militares

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O uso de câmeras corporais (body cams) por agentes militares se consolidou como uma ferramenta relevante para a produção de provas em abordagens, patrulhamentos e operações de segurança pública. Embora representem importante instrumento de transparência e responsabilização estatal, a utilização dessas gravações como prova judicial depende da observância rigorosa da cadeia de custódia.

Este artigo analisa os principais aspectos jurídicos e técnico-periciais que envolvem a admissibilidade de vídeos produzidos por body cams militares, destacando riscos de adulteração, falhas na preservação, lacunas procedimentais e impactos na validade probatória. A discussão inclui referências normativas (CPP, Lei 13.964/2019, princípios constitucionais), critérios de integridade digital, além de abordagens práticas aplicáveis no âmbito militar.

A difusão das body cams no contexto militar e policial transformou a forma como os fatos são documentados e avaliados judicialmente. As imagens captadas por esses dispositivos passaram a compor um novo paradigma probatório, oferecendo registros audiovisuais contínuos e potencialmente objetivos das ações estatais.

Entretanto, como qualquer evidência digital, sua força probatória depende de uma cadeia de custódia íntegra, rastreável e documentada. Irregularidades nos procedimentos de coleta, armazenamento e transferência podem gerar nulidade, contaminação ou perda da confiabilidade do material especialmente quando se discute abuso de autoridade, legítima defesa, resistência à prisão ou excessos em operações militares.

Body Cams como Prova

No ambiente militar, as body cams cumprem três funções centrais: como Registro técnico-operacional, documentando cada fase da ação, transparência e controle institucional, reduzindo contestações e auxiliando corregedorias, instrumento probatório, podendo fundamentar processos disciplinares, administrativos, militares e criminais.

A produção probatória oriunda de body cams se enquadra como prova documental eletrônica, submetida às regras gerais do Código de Processo Penal1, do CPPM2, da Lei 12.965/2014 (Marco Civil)3, da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime)4 e de normas técnicas de integridade digital (como ISO/IEC 27037 e 27041).

Cadeia de Custódia: Fundamentos Jurídicos

A cadeia de custódia, prevista nos arts. 158-A a 158-F do CPP, determina que todo vestígio seja devidamente rastreado desde a coleta até sua apresentação em juízo. Esse requisito aplica-se integralmente às evidências digitais, incluindo as imagens produzidas por body cams. Nesses casos, torna-se essencial que os algoritmos, parâmetros técnicos e mecanismos de geração de integridade estejam acessíveis e verificáveis, assegurando controle, rastreabilidade e imutabilidade do arquivo.

Riscos Específicos de Quebra de Cadeia de Custódia em Body Cams

A utilização de body cams como instrumento probatório envolve uma série de vulnerabilidades próprias do ambiente digital. Diferentemente de um vestígio físico, os registros audiovisuais são facilmente alteráveis, copiáveis e manipuláveis, o que exige protocolos rígidos de preservação. Quando esses cuidados não são observados, a cadeia de custódia pode ser rompida. Entre os riscos mais frequentes, destacam-se:

Interrupções ou cortes na gravação

Falhas, pausas não justificadas ou edições no fluxo contínuo da filmagem podem indicar manipulação, supressão de eventos relevantes ou direcionamento narrativo, comprometendo a confiabilidade da prova.

Ausência de hash no momento da extração dos dados

A inexistência de hash criptográfico gerado no exato momento da extração dos dados compromete seriamente a autenticidade da prova digital. O hash funciona como uma “impressão digital” do arquivo, permitindo verificar se o conteúdo permaneceu íntegro desde a coleta até sua análise. Quando essa etapa não é realizada ou não é devidamente documentada, torna-se impossível assegurar que o material extraído da body cam corresponde integralmente ao original armazenado no dispositivo. Essa lacuna abre margem para questionamentos quanto a possíveis edições, substituições, perdas ou alterações imperceptíveis, configurando quebra da cadeia de custódia e fragilizando a validade probatória do registro audiovisual.

Acesso indevido dos agentes

Quando o policial ou militar que porta a câmera tem possibilidade de apagar, editar ou transferir arquivos, a integridade do material fica seriamente comprometida, abrindo espaço para alegações de adulteração.

Transferência manual não documentada

A movimentação de arquivos para pen drives, HDs externos ou computadores sem registro formal de cadeia de custódia (logs, formulários, responsável, horário) cria lacunas que podem invalidar a prova.

Armazenamento em sistemas sem registros

O armazenamento de vídeos de body cams em sistemas que não possuem registros detalhados na cadeia de custódia, torna-se impossível comprovar a integridade do material ao longo do tempo. A ausência desses registros impede a verificação de eventual manipulação, exclusão, corrupção ou substituição dos arquivos. Em termos práticos, sem a rastreabilidade necessária para demonstrar que o conteúdo audiovisual apresentado em juízo é idêntico e original, configurando quebra da cadeia de custódia e comprometendo a confiabilidade probatória da gravação.

A inconsistência nos metadados

A presença de inconsistências nos metadados de vídeos produzidos constitui um indicativo relevante de possível adulteração ou falha na preservação da prova digital. Quando esses elementos apresentam divergências, saltos temporais, parâmetros incompatíveis ou valores que não correspondem ao equipamento utilizado, surge uma suspeita fundada de manipulação, reconstrução ou corrompimento do conteúdo. Tais discrepâncias comprometem a autenticidade do registro e dificultam a comprovação da prova.

Ausência de regras claras sobre quando ligar ou desligar a câmera, quem gerencia os arquivos e como realizar o upload abre espaço para uso seletivo das gravações e perda da confiabilidade institucional.

Armazenamento temporário sem controle

O armazenamento temporário de arquivos de body cams em dispositivos ou plataformas que não possuem adequação correta de preservação representa um grave risco à integridade da prova digital. Esse tipo de ambiente facilita a contaminação da prova, substituições ou exclusões da prova comprometendo a confiabilidade do registro. A ausência de uma cadeia de custódia robusta torna o material extremamente vulnerável a questionamentos técnicos e jurídicos, podendo inclusive conduzir ao reconhecimento de sua inidoneidade para fins probatórios.

Nesse contexto, o FAV (Formulário de Acompanhamento do Vestígio) desempenha um papel fundamental: é ele que documenta, passo a passo, até sua apresentação final. Ao registrar o FAV assegura transparência, rastreabilidade e confiabilidade, funcionando como a “coluna vertebral” documental que sustenta a integridade da cadeia de custódia.

Quando a cadeia de custódia é violada, surgem efeitos jurídicos que podem alterar profundamente o processo. No âmbito militar, falhas graves podem afetar também a regularidade da operação e a responsabilização pelo estrito cumprimento do dever legal.

Parâmetros Técnico-Periciais

A análise pericial de registros produzidos por body cams exige a observação rigorosa de um conjunto de parâmetros técnico-periciais que garantem a autenticidade, integridade e confiabilidade do material audiovisual. Esses parâmetros funcionam como critérios objetivos que orientam o perito na verificação da cadeia de custódia digital e na detecção de possíveis manipulações ou inconsistências.

Considerações Finais

A utilização de body cams militares representa avanço significativo na transparência das ações estatais e na qualidade da prova produzida em abordagens e operações. Contudo, sua efetividade depende diretamente da preservação rigorosa da cadeia de custódia, especialmente no ambiente digital, onde a manipulação é mais sutil e menos perceptível.

A superação das fragilidades analisadas exige padronização nacional, formação técnica dos agentes e aperfeiçoamento constante dos sistemas de armazenamento e auditoria. Somente assim será possível garantir segurança jurídica, legitimidade institucional e proteção dos direitos fundamentais envolvidos nas operações militares.

  1. Código de Processo Penal https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-publicacaooriginal-1-pe.html?utm ↩︎
  2. CPPM https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-1002-21-outubro-1969-376259-norma-pe.html?utm ↩︎
  3. Lei 12.965/2014 (Marco Civil) https://legis.senado.gov.br/norma/584776?utm ↩︎
  4. Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) https://legis.senado.leg.br/norma/31865675?utm ↩︎