Seis meses preso por uma foto: TJSP condena o Estado por manipulação da prova na investigação policial

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.

A 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo na apelação Cível nº 1004453-81.2021.8.26.0229 – TJSP proferiu recente e relevante decisão ao condenar o Estado de São Paulo ao pagamento de aproximadamente R$ 90 mil a título de indenização por danos morais a um homem que permaneceu preso preventivamente por quase seis meses com base exclusiva em um reconhecimento fotográfico posteriormente considerado ilícito. Trata-se de julgado paradigmático, pois aprofunda a distinção entre erro judiciário e ilícito administrativo na fase investigativa, além de reforçar os limites constitucionais da prova penal.

da denúncia anônima à prisão preventiva

A investigação teve origem em apuração de homicídio qualificado consumado e tentado. Segundo a vítima, dois homens teriam participado das agressões: um mais velho, identificado por uma tatuagem de palmeira no abdômen, e seu filho mais novo, ambos supostamente contratados por um terceiro. Durante o inquérito, esses indivíduos passaram a ser informalmente denominados como “Palmeirense” e “filho do palmeirense”.

Sem que houvesse identificação nominal ou descrição física compatível, o setor de investigações produziu relatório informando ter “recebido informações” de origem anônima — de que os autores seriam um morador da região e seu filho. A partir dessa informação não verificada, a polícia direcionou a investigação a essas duas pessoas e promoveu um reconhecimento fotográfico em delegacia, procedimento que se tornaria o único fundamento da prisão preventiva posteriormente decretada.

A manipulação do reconhecimento e a fragilidade probatória

O reconhecimento, entretanto, revelou-se profundamente viciado. A vítima jamais havia mencionado o nome do suspeito preso, tampouco descrito características físicas compatíveis com ele. Ainda assim, o relatório policial registrou um reconhecimento categórico, “sem sombra de dúvidas”.

Em juízo, a vítima esclareceu que, no momento do reconhecimento, chegou a informar ao investigador que o homem apresentado não era o autor do crime, mas acabou sendo induzida a assinar o auto. Segundo seu relato, o policial teria insistido que aquele era “o único filho” do suspeito mais velho, conduzindo-a à confirmação da versão policial. Posteriormente, de forma clara e coerente, a vítima afirmou que quem participou do crime foi outro filho, mais novo, e não o homem que permaneceu preso.

O caso expõe, de forma didática, o risco do reconhecimento fotográfico realizado sem observância das garantias legais e sem controle metodológico, especialmente quando utilizado como prova única e determinante para a restrição da liberdade.

O voto condutor e a distinção entre erro judiciário e ilícito administrativo

No voto condutor, o desembargador Semer estabeleceu distinção fundamental entre a atividade jurisdicional, sujeita à responsabilidade subjetiva por erro judiciário, e a atividade administrativa de investigação, submetida ao regime da responsabilidade objetiva do Estado.

Para o Tribunal, o magistrado que decretou a prisão preventiva não incorreu em erro técnico, pois se baseou nos elementos constantes dos autos naquele momento. O ilícito, portanto, não se originou da decisão judicial, mas da conduta administrativa da polícia, que manipulou a produção da prova ao induzir o reconhecimento fotográfico e registrar de forma distorcida a manifestação da vítima.

Trata-se de reconhecimento explícito de que a violação às garantias processuais pode ocorrer antes mesmo do processo, na fase pré-processual, e que tais violações geram dever de indenizar quando resultam em privação indevida da liberdade.

Impactos e reflexões: prova, cadeia decisória e responsabilidade estatal

A decisão reforça entendimentos já consolidados no âmbito penal sobre a extrema cautela necessária nos reconhecimentos pessoais e fotográficos, conforme reiteradamente advertido pelos tribunais superiores. Mais do que isso, o acórdão amplia o debate ao evidenciar que a contaminação da prova na investigação compromete toda a cadeia decisória subsequente, ainda que o Judiciário atue de boa-fé.

Sob a perspectiva da responsabilidade civil do Estado, o julgado sinaliza que práticas investigativas abusivas, manipuladas ou metodologicamente frágeis não são meros desvios formais, mas ilícitos administrativos graves, aptos a gerar dano moral indenizável.

Em tempos de valorização crescente da prova técnica e do controle de legalidade da atividade policial, o caso serve como alerta: a busca por eficiência investigativa não pode se sobrepor às garantias fundamentais, sob pena de transformar a prova em instrumento de injustiça.

O voto paradigmático da 10ª Câmara de Direito Público do TJSP reafirma que ninguém pode ser privado de sua liberdade com base em prova produzida de forma ilícita e manipulada, ainda que o erro não seja judicial, mas administrativo. A decisão contribui para o amadurecimento institucional do controle da atividade investigativa e para a consolidação de uma cultura probatória comprometida com a legalidade, a técnica e os direitos fundamentais.


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