Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.
Cadeia de custódia, contraditório e o limite da prova técnica no processo penal
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 218.358/PI, firmou entendimento de grande relevância para o processo penal contemporâneo: é nulo o laudo pericial elaborado a partir de mídias cujo conteúdo integral não pôde ser acessado pela defesa, em razão de falhas de armazenamento ao longo da cadeia de custódia.
A decisão não trata de um detalhe técnico irrelevante. Ao contrário, enfrenta um dos pontos mais sensíveis da prova moderna: a confiabilidade da evidência pericial quando a parte não pode exercer a contraprova.
laudo existe, mas a prova desapareceu
No caso analisado, os laudos periciais foram regularmente confeccionados por peritos oficiais, com indicação de algoritmos hash e disponibilização de links para acesso aos vídeos e imagens utilizados na perícia.
O problema surgiu depois.
As mídias originais CDs contendo gravações e simulações periciadas — apresentaram avarias e extravio, tornando impossível à defesa o acesso integral ao conteúdo que fundamentou os laudos. Ou seja, havia o relatório técnico, mas não havia mais a fonte da prova.
Esse cenário impediu:
- a reanálise técnica,
- a verificação da metodologia aplicada,
- a contestação dos resultados,
- e a produção de contraprova.
Cadeia de custódia: mais que um conceito, uma garantia
O STJ reforçou que a cadeia de custódia, positivada nos arts. 158-A a 158-F do Código de Processo Penal, tem como finalidade assegurar:
- autenticidade, integridade, confiabilidade da prova, desde a coleta até o descarte.
A quebra da cadeia de custódia ocorre quando há falha em qualquer elo desse percurso físico ou digital capaz de comprometer a rastreabilidade e o controle da evidência.
Não é toda ausência de mídia que gera nulidade mas aqui gerou
O STJ foi cuidadoso ao afastar uma leitura automática da nulidade. A Corte esclareceu que nem toda ausência de mídia implica, por si só, quebra da cadeia de custódia.
A análise deve ser casuística, considerando: a essencialidade da mídia para a reconstrução do iter probatório; a possibilidade real de contraprova; e o impacto sobre os direitos fundamentais da defesa.
No caso concreto, a ausência: das gravações do dia do sinistro, e das simulações realizadas,
comprometeu de forma direta a análise técnica defensiva, resultando em: Inefetividade do contraditório, violação da ampla defesa, quebra da paridade de armas.
Prova cautelar sem contraditório prévio exige ainda mais rigor
Outro ponto relevante destacado pelo relator, Ministro Sebastião Reis Júnior, foi o dever reforçado de conservação da prova, especialmente quando se trata de prova cautelar, produzida:
- sem contraditório prévio,
- sob controle judicial diferido.
Nessas hipóteses, a preservação do objeto original da prova não é opcional é condição de validade. Se, no momento oportuno da instrução, a defesa não puder acessar o material bruto, o laudo perde sua legitimidade processual.
É como tentar discutir a autenticidade de um contrato sem nunca ter acesso ao documento original.
laudo nulo e desentranhamento obrigatório
Diante da falha no armazenamento e do extravio das mídias, o STJ reconheceu:
- a quebra da cadeia de custódia;
- a nulidade dos laudos periciais;
- e determinou o desentranhamento dos documentos dos autos.
A decisão reforça uma mensagem clara ao sistema de justiça:
Não existe prova pericial válida sem acesso integral da defesa à fonte da prova.
Impacto prático para a advocacia e a perícia
Esse precedente é especialmente relevante para:
- impugnações de laudos digitais,
- questionamentos sobre cadeia de custódia,
- casos envolvendo imagens, vídeos, áudios e simulações,
- e situações em que a prova técnica substitui, na prática, o próprio fato.
Mais do que discutir hashes ou assinaturas digitais, o STJ recoloca o foco onde sempre deveria estar: Na efetividade do contraditório e na possibilidade real de fiscalização da prova pela defesa.
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