Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.

A circulação de informações na sociedade digital segue um percurso silencioso, mas extremamente revelador. Cada clique, acesso ou conexão deixa rastros e é justamente sobre esses rastros, especialmente os dados de IP, que o Supremo Tribunal Federal 1voltou a se debruçar ao suspender o julgamento da ADC 91, que discute a necessidade (ou não) de ordem judicial para o acesso a esses dados por autoridades públicas.
O julgamento, realizado no Plenário Virtual do STF, foi interrompido por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, após o voto do relator, ministro Cristiano Zanin, o único a se manifestar até o momento. A retomada ficou prevista apenas para 2026, o que, por si só, já demonstra a complexidade e a sensibilidade do tema.
investigação versus direitos fundamentais
A ação foi proposta pela Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint) diante de um cenário de insegurança jurídica. Provedores de internet vinham recebendo requisições diretas de autoridades policiais e do Ministério Público para fornecimento de dados de IP, muitas vezes sob ameaça de responsabilização criminal por desobediência.
No centro da controvérsia está a interpretação do artigo 10 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014)2: afinal, a identificação de usuários a partir de endereços de IP pode ser feita sem autorização judicial?
IP não é dado neutro
No voto apresentado, o ministro Cristiano Zanin foi categórico ao afirmar que dados de tráfego não são informações banais. Registros de conexão e de acesso a aplicações, ainda que não revelem diretamente o conteúdo das comunicações, têm alto potencial invasivo.
Na prática, esses metadados permitem reconstruir hábitos, rotinas, deslocamentos, preferências e redes de relacionamento. É como observar o mapa de deslocamento de uma pessoa: mesmo sem ouvir suas conversas, é possível saber onde esteve, com quem se encontrou e quais padrões repete.
Por isso, o relator defendeu que o acesso a esses dados deve estar sujeito à reserva de jurisdição, ou seja, depender de decisão judicial fundamentada, como forma de proteção aos direitos fundamentais.
dados cadastrais x dados de tráfego
Um ponto relevante do voto foi a diferenciação clara entre tipos de informação:
- Dados cadastrais básicos (nome, filiação, endereço): podem ser requisitados diretamente por autoridades, conforme já prevê o Marco Civil;
- Identificação de usuários por IP: não se enquadra nessa exceção e exige controle judicial.
Essa distinção evita interpretações expansivas que transformariam exceções legais em regra, abrindo espaço para um acesso estatal amplo e pouco controlado ao universo digital dos cidadãos.
Autodeterminação informacional e o fim do “dado insignificante”
Zanin também reforçou um princípio-chave do constitucionalismo informacional: não existem dados insignificantes na sociedade da informação. Isoladamente, um registro pode parecer inofensivo; cruzado com outros, torna-se uma poderosa ferramenta de vigilância e perfilização.
Nesse sentido, o direito à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informacional atua como limite material à atuação estatal, exigindo base legal clara, finalidade legítima e proporcionalidade.
Exceções: urgência real, controle posterior
O relator admitiu exceções apenas em situações extremas de urgência, quando houver perigo iminente a bens jurídicos de altíssimo valor, como a vida ou a liberdade. Mesmo nesses casos, o acesso direto aos dados de IP:
- Deve ser devidamente documentado;
- Precisa ser submetido posteriormente ao controle do Judiciário.
Ou seja, a urgência não elimina a necessidade de prestação de contas apenas adia o controle.
A ADC 91 não discute apenas um detalhe procedimental. Ela define como o Estado pode percorrer o caminho da informação: se com freios institucionais, transparência e controle judicial, ou por atalhos que fragilizam direitos fundamentais em nome da eficiência investigativa.
A suspensão do julgamento mantém, por ora, a insegurança jurídica. Mas o voto já proferido sinaliza uma compreensão alinhada à Constituição, à LGPD e à lógica de que, no mundo digital, informação é poder e poder exige limites. Quando o STF retomar o julgamento, em 2026, não estará decidindo apenas sobre IPs, mas sobre o equilíbrio entre investigação, privacidade e democracia na era dos dados.
- Fonte: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/27363818/art-10-da-lei-n-12965-de-23-de-abril-de-2014 ↩︎
- artigo 10 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) https://www.jusbrasil.com.br/topicos/27363818/art-10-da-lei-n-12965-de-23-de-abril-de-2014 ↩︎
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