Caso Vitória: quando a investigação falha e a injustiça se torna protagonista

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.

O caso Vitória deixou de ser apenas mais um homicídio de grande repercussão para se transformar em um exemplo alarmante de como falhas investigativas, interferências políticas e desrespeito a princípios básicos do processo penal podem comprometer a busca pela verdade. Independentemente de quem seja o autor do crime, o que se observa é um conjunto de erros graves que colocam em risco a validade jurídica de todo o processo.

A confissão que não se sustenta

No Brasil, a confissão é apenas um meio de prova e, para ter validade, precisa ser espontânea, detalhada e livre de indução. Não basta alguém dizer “eu matei”. É necessário explicar como, quando, com que instrumento, em que circunstâncias e de forma coerente com os demais elementos probatórios.

No caso Vitória, a chamada confissão apresenta problemas sérios:

  • O réu não traz detalhes espontâneos;
  • Responde de forma vaga e pobre;
  • Erra informações básicas, como número e local das facadas;
  • Ajusta suas respostas conforme gestos, perguntas e sugestões do delegado e do escrivão;
  • Não descreve dinâmica compatível com a cena real do crime.

Além disso, a confissão ocorreu após a meia-noite, em desacordo com o Código de Processo Penal, e com a presença de pessoas que não deveriam estar ali, incluindo o secretário municipal de segurança algo absolutamente atípico e juridicamente injustificável.

Confissão induzida não é prova. É risco de nulidade.

A presença política onde deveria haver neutralidade

Outro ponto extremamente sensível é a interferência política. Um secretário municipal acompanhando depoimento e confissão de réu, à noite, em um caso específico e apenas nesse caso levanta questionamentos inevitáveis.

Some-se a isso o envio de uma advogada da prefeitura para acompanhar o réu naquele momento, enquanto seu advogado constituído depois afirma que jamais abandonou o caso. Tudo isso está documentado nos autos.

A pergunta que fica é simples: Por que tanto interesse político em um único caso?

Cadeia de custódia: o erro que destrói a prova

Sem cadeia de custódia, não existe prova válida.

No caso Vitória1, praticamente nenhum elemento material respeitou esse princípio fundamental:

  • O carro do investigado ficou dias na garagem da polícia sem controle formal;
  • Não há registros claros de quem abriu, fechou, manuseou ou teve acesso aos objetos;
  • O celular do investigado foi extraído pelo próprio delegado, e não por perícia técnica;
  • Não há hashes, lacres nem documentação adequada.

Em termos práticos, isso significa que qualquer prova digital ou material se torna juridicamente imprestável, ainda que pudesse, em tese, apontar para a verdade.

Sangue que não aparece e não pode desaparecer

A versão apresentada afirma que a vítima foi atacada dentro do carro, ainda viva, com perfurações no pescoço. Do ponto de vista pericial, isso gera um efeito inevitável: grande projeção de sangue.

Quando o coração está batendo, o sangue:

  • Espirra;
  • Penetra em costuras de banco;
  • Alcança teto, portas, chão;
  • Deixa vestígios praticamente impossíveis de eliminar totalmente.

Mesmo após limpeza intensa, reagentes como luminol ou BlueStar revelam marcas. E, se houver dúvida, testes confirmatórios como o Fecacult determinam se é sangue humano.

No carro analisado:

  • Não foi encontrado sangue;
  • Houve menção vaga a “vestígios biológicos não alheios a sangue”;
  • A perícia concluiu que o material era insuficiente para determinar a causa da morte.

A pergunta inevitável surge: Como alguém esfaqueado no pescoço, ainda vivo, não deixa vestígios de sangue no local onde teria sido atacado?

O celular que some e o digital que não foi investigado

A vítima possuía um iPhone que nunca foi localizado. Em um mundo onde quase tudo é rastreável, isso é gravíssimo. Aplicativos, redes sociais, serviços de nuvem e o próprio sistema da Apple armazenam dados de geolocalização. Bastaria oficiar:

  • Apple
  • Google
  • Meta (WhatsApp, Instagram, Facebook)

A resposta da Apple, alegando que não coleta geolocalização, foi aceita sem questionamento. A defesa pediu aprofundamento. A Justiça considerou “irrelevante”. Em um homicídio de uma adolescente, isso não é irrelevância. É omissão investigativa.

Imagens inseridas depois da apreensão

Outro ponto crítico envolve o conteúdo do celular do investigado:

  • Foram encontradas imagens da vítima e de jovens semelhantes a ela;
  • Essas imagens foram inseridas após a entrega do celular à polícia;
  • A data de inserção consta nos autos;
  • As mesmas imagens aparecem no celular do namorado da vítima.

Sem hashes, sem cadeia de custódia e com indícios claros de inserção posterior, a prova digital perde qualquer credibilidade.

O corpo, o furo ignorado e o fertilizante esquecido

O laudo do IML aponta um ferimento posterior no pescoço, tratado como achado relevante e simplesmente ignorado pela investigação. Além disso, ao lado do corpo foi encontrado um saco de fertilizante NPK, produto:

  • Caro;
  • Rastreável;
  • Vendido com controle de lote.

Nada foi feito para identificar origem, comprador ou trajeto do produto. Um caminho investigativo simples, objetivo e totalmente ignorado.

Aqui entra uma lógica básica da criminologia: Quem tenta ocultar um corpo geralmente busca o meio mais barato, rápido e acessível como cal, não fertilizante de alto custo.

Um roteiro mal escrito

Ferramentas encontradas dias depois, organizadas lado a lado no mato; roupas e objetos surgindo tardiamente; ausência de vestígios compatíveis; versões contraditórias; policiais mentindo em juízo; investigações paralelas conduzidas pela GCM em vez da Polícia Civil. Tudo isso compõe um cenário que não parece erro isolado, mas um acúmulo de falhas graves.

Justiça não é espetáculo

Casos de grande repercussão atraem imprensa, engajamento e audiência. Mas quando a narrativa passa a importar mais do que a técnica, o risco é transformar investigação em espetáculo e processo penal em palco. O juiz retirou a confissão dos autos. Ainda assim, sinalizou a intenção de levar o réu a júri, empurrando a discussão sobre provas frágeis para uma fase futura. É a chamada “teoria da maçã podre”: quando uma prova contaminada compromete todo o conjunto.

O verdadeiro risco

O ponto central não é afirmar quem matou Vitória.
O ponto central é este:

Se o autor for culpado, ele pode sair livre.
Se for inocente, uma injustiça irreparável está em curso.

Em ambos os cenários, a sociedade perde.

Casos como esse não mobilizam apenas por causa do crime, mas porque a injustiça indigna mais do que a violência em si. Ela gera medo, identificação e revolta afinal, se o Estado erra aqui, pode errar com qualquer um.

O Caso Vitória escancara a necessidade de investigações técnicas, independentes, sem interferência política e com respeito absoluto à cadeia de custódia. A verdade não nasce de versões apressadas, confissões frágeis ou holofotes midiáticos.

Justiça se constrói com método, rigor e responsabilidade. E, neste caso, ainda há muitas perguntas sem resposta.

  1. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=7ERzHPzOQYo ↩︎

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