Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
A prova digital, frequentemente tratada como sinônimo de verdade absoluta nos processos criminais contemporâneos, voltou ao centro de um debate delicado: quem fiscaliza a integridade de quem investiga? Um laudo técnico em informática forense revelou indícios graves de adulteração em celulares apreendidos na casa do contraventor Rogério de Andrade, colocando sob suspeita não apenas arquivos digitais, mas todo um método de persecução penal.
O exame pericial, encomendado pela defesa dos seguranças do bicheiro, aponta falhas que ultrapassam erros formais. Segundo o perito responsável, o aparelho celular foi apreendido sem lacre, sem identificação adequada e sem a presença de perito oficial, em desacordo direto com o artigo 158 do Código de Processo Penal1. Mais grave ainda: o dispositivo teria sido removido e manuseado sem autorização técnica, rompendo a cadeia de custódia logo no seu primeiro elo.
Como se não bastasse, o laudo destaca que o telefone não foi encaminhado a uma central de custódia, permanecendo sob posse direta do Ministério Público. Essa circunstância, por si só, já compromete o princípio da preservação do vestígio, pois permite acesso irrestrito ao conteúdo, sem controle, registro ou rastreabilidade — exatamente o que a legislação processual e as normas técnicas buscam evitar.
Arquivos que mudam no tempo
A análise dos dados extraídos revelou um ponto ainda mais sensível: bancos de dados do WhatsApp apresentaram datas de modificação posteriores à apreensão do aparelho. Em termos periciais, isso equivale a encontrar impressões digitais sobrepostas em uma arma já recolhida pela polícia.
Registros indicaram acessos ao aplicativo entre os dias 11 e 15 de maio de 2022, inclusive durante um fim de semana, quando o celular já deveria estar completamente isolado. Em qualquer protocolo minimamente rigoroso de informática forense, esse tipo de atividade posterior à apreensão acende um alerta vermelho.
Outro aspecto relevante foi a ausência do banco de dados da agenda geral de contatos, elemento essencial para contextualizar comunicações, verificar vínculos e afastar interpretações enviesadas. Para o perito, a inexistência desse arquivo pode indicar omissão deliberada ou seleção de dados durante o processo de extração, o que compromete a análise do conjunto probatório.
Quando a prova perde a presunção de confiabilidade
Diante dessas inconsistências, a defesa dos réus sustentou, em ofício ao juízo, que há fundadas dúvidas sobre a integridade do material probatório. O documento invoca precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais a extração e análise de vestígios digitais devem ser realizadas exclusivamente por peritos oficiais, sob pena de inadmissibilidade da prova.
Não se trata de mero formalismo. Em matéria de prova digital, forma é substância. Um arquivo fora da cadeia de custódia é como um documento sem assinatura ou uma interceptação sem autorização judicial: juridicamente frágil, tecnicamente questionável e potencialmente nulo.
Com base nessas constatações, a defesa requereu o envio do material a um órgão pericial oficial independente, para apuração de eventual adulteração, além da suspensão do prazo para resposta à acusação até que as irregularidades sejam esclarecidas.
Estado de Direito não admite atalhos
A fala do advogado Igor de Carvalho sintetiza o cerne da controvérsia:
“A confiança no sistema de justiça transpassa não só pela eficiência dos órgãos de persecução, mas sobretudo pelo respeito às leis. Em um Estado democrático de Direito, nenhuma instituição deve possuir carta branca para cometer ilegalidades e atropelar direitos fundamentais. Nem mesmo o tão poderoso Ministério Público. Há que se lembrar que não se pode combater crimes cometendo crimes”.
O episódio lança luz sobre uma verdade incômoda: a prova digital não é neutra, e quem a manipula carrega responsabilidade técnica, jurídica e ética. Quando regras básicas são ignoradas, não é apenas a defesa que sai prejudicada é a própria credibilidade do sistema de justiça que entra em colapso.
No fim, a máxima se confirma: ninguém está puro. Nem o réu, nem o investigador, nem a prova. É justamente por isso que o Direito existe para impor limites, inclusive (e principalmente) a quem acusa.
Clique aqui para ler o ofício enviado ao juiz
Clique aqui para ler o laudo pericial
- Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-dez-25/laudo-aponta-adulteracao-de-provas-em-celulares-de-segurancas-rogerio-de-andrade/ ↩︎
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