Como o iPhone Sem Entrada USB Redefine a Perícia Digital e o Direito à Prova

Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

A nova era do iPhone e o colapso silencioso da perícia tradicional

Uma revolução silenciosa está prestes a abalar profundamente a atuação forense e jurídica no Brasil e no mundo. A Apple se prepara para lançar modelos de iPhone sem qualquer entrada física — nem mesmo a porta USB-C. O que parece apenas uma evolução estética ou funcional, na prática, pode implodir os métodos atuais de coleta de provas digitais.

Peritos, assistentes técnicos, advogados e membros do Judiciário precisam estar atentos: o fim das conexões físicas em dispositivos móveis exige uma revisão completa dos protocolos, métodos e ferramentas de extração e análise de dados digitais. O risco de nulidades processuais por prova mal colhida ou inacessível é real — e iminente.

Por que o cabo sempre foi peça-chave?

Durante anos, o cabo USB foi o elo vital entre o celular e as ferramentas de perícia digital. Por ele se realizam extrações completas de dados — mensagens, fotos, geolocalizações, históricos de navegação e até arquivos apagados — com apoio de softwares forenses mundialmente reconhecidos (UFED, XRY, Magnet, entre outros).

A conexão física garante segurança, controle e preservação da cadeia de custódia. Além disso, possibilita que a extração ocorra mesmo em aparelhos bloqueados, desde que com autorização judicial. É um procedimento consagrado em POPs (Procedimentos Operacionais Padrão), respeitado e auditável. Com a retirada dessa interface, como fica a atuação técnica?

Da porta USB à nuvem: e agora, como extrair provas?

Sem a porta física, as ferramentas atuais deixam de funcionar. E o improviso não resolve. Fotografar a tela do celular, por exemplo, não atende aos requisitos de autenticidade, integridade e cadeia de custódia, podendo ser facilmente contestado judicialmente.

Surgem então três rotas alternativas — todas ainda frágeis:

  1. Extração por rede Wi-Fi ou Bluetooth, com desafios enormes de segurança e estabilidade;
  2. Acesso à nuvem do usuário (como iCloud ou Google Drive), que exige autorização judicial expressa e colaboração das big techs;
  3. Backups automatizados — que nem sempre estão atualizados ou completos.

Todas essas rotas requerem altíssimo conhecimento técnico, estrutura laboratorial robusta e novos POPs. A maioria dos órgãos periciais públicos no Brasil ainda não está preparada para esse salto tecnológico.

A advertência do Juiz Alexandre Morais da Rosa

O juiz e professor Alexandre Morais da Rosa1, referência nacional em Processo Penal e Tecnologia, já advertia em suas obras e palestras:

“O processo penal não pode ser refém da ignorância tecnológica. Quando o aparato estatal não compreende os meios digitais, corre-se o risco de decisões injustas por ausência de compreensão técnica sobre como as provas são obtidas.”

Essa fala torna-se ainda mais atual com a chegada dos iPhones sem entrada USB. O desconhecimento técnico não pode justificar a perda do direito à prova, nem legitimar investigações que não respeitem os critérios da cadeia de custódia e da legalidade.

Mudança radical nos POPs: protocolo precisa evoluir

A retirada do cabo USB exige uma resposta rápida e estruturada:

  • Revisão completa dos POPs de coleta digital;
  • Treinamento urgente de peritos e assistentes técnicos para atuação via rede ou nuvem;
  • Investimento em soluções nacionais de software e hardwares forenses compatíveis com os novos formatos;
  • Atualização da cadeia de custódia, contemplando registros de conexão remota e autenticação de dados armazenados em nuvem.

Se não houver essa atualização, o risco é grande: provas podem ser invalidadas, investigações comprometidas e processos anulados por ausência de acesso ou comprometimento da integridade dos vestígios digitais.

Inovação tecnológica e o risco ao devido processo legal

Essa não é apenas uma questão técnica. É jurídica, processual e constitucional. O acesso à prova digital envolve diretamente garantias fundamentais:

  • O direito à ampla defesa;
  • O contraditório efetivo;
  • A busca pela verdade real;
  • A atuação isonômica entre acusação e defesa.

Se apenas a acusação conseguir acesso a certos dados — ou se a defesa for impedida por questões técnicas — há risco de desequilíbrio processual. Por outro lado, se a Justiça não puder acessar provas armazenadas digitalmente, impunidades podem ocorrer por falhas meramente tecnológicas.

o fim do cabo é o início de uma nova perícia

O cabo USB vai embora, mas os desafios apenas começaram. A perícia forense digital precisa se reinventar com urgência, desenvolver novas soluções, capacitar suas equipes e, sobretudo, adaptar seu olhar jurídico e técnico ao novo cenário. Como bem pontua o juiz Alexandre Morais da Rosa, não se trata de modismo, mas da própria essência do processo justo em tempos digitais. É preciso garantir que a evolução da tecnologia não se torne involução da Justiça.

Fonte:

  1. O fim do cabo USB no iPhone. Perícia somente em nuvem https://www.conjur.com.br/2025-jun-27/o-fim-do-cabo-usb-no-iphone-pericia-somente-em-nuvem/ ↩︎