Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
A Geolocalização como Prova em Ações Trabalhistas: Entre a Verdade Real e o Direito à Privacidade
Com o avanço da tecnologia e a digitalização da vida cotidiana, o uso de provas digitais no processo judicial tornou-se cada vez mais comum. No entanto, nem toda inovação tecnológica se traduz automaticamente em admissibilidade processual. Um exemplo claro é o recente julgamento em uma ação trabalhista que envolveu a tentativa de uso de dados de geolocalização da reclamante como meio de prova. A controvérsia girou em torno da compatibilidade desse tipo de prova com os princípios constitucionais da intimidade e da proporcionalidade.
No processo de n. 0011177-28.2023.5.15.0093, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15) posicionou-se no sentido de que a utilização de provas digitais de fontes fechadas dependerá da utilidade prática no caso concreto.

O Caso Concreto: Quando a Tecnologia Enfrenta Limites Jurídicos
Na ação trabalhista em questão, discutiam-se horas extras, intervalo intrajornada e o suposto exercício de cargo de confiança. Para comprovar a jornada alegada pela reclamante, a empresa requerida pleiteou a produção de prova digital baseada na geolocalização do celular da ex-empregada. O objetivo era mapear seus deslocamentos e horários, buscando demonstrar a compatibilidade (ou não) entre o tempo efetivamente trabalhado e as alegações constantes na petição inicial. O pedido foi indeferido tanto pelo juízo de primeiro grau quanto pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15), sob três fundamentos principais:
- Violação à intimidade e à privacidade: A coleta de geolocalização configura invasão de um dado sensível, protegido pela Constituição Federal e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
- Provas já suficientes: O conjunto probatório já contava com documentos e testemunhos capazes de embasar a decisão.
- Diligência desproporcional: A medida seria excessivamente complexa e com potencial de atrasar o processo, sem contrapartida de utilidade concreta.
Por outro lado, o Tribunal reconheceu nulidade parcial por cerceamento de defesa, determinando o retorno dos autos para realização dos depoimentos pessoais das partes — o que evidencia a importância do contraditório e da busca pela verdade real.
Análise Técnica: Prova Digital vs. Direitos Fundamentais
O caso ilustra bem o desafio de equilibrar o uso de tecnologia com os direitos fundamentais da parte envolvida. A geolocalização, apesar de ser uma ferramenta potente, é classificada como dado pessoal sensível pela LGPD, exigindo, portanto, fundamentação robusta, necessidade comprovada e respeito ao princípio da minimização (limitação à coleta de dados estritamente necessários).
Além disso, a coleta de tais informações depende, em regra, do consentimento da parte afetada ou de autorização judicial em casos excepcionais, desde que observados os critérios da proporcionalidade e da adequação. No processo em tela, a inexistência de demonstração de indispensabilidade da prova e a possibilidade de outras vias probatórias menos invasivas justificaram o indeferimento.
Reflexões para o Operador do Direito e o Perito Digital
Para advogados, peritos e juízes, o caso serve como alerta: nem todo recurso tecnológico deve ser incorporado de forma acrítica ao processo judicial. A prova digital precisa ser contextualizada, fundamentada e compatível com os valores constitucionais. Para o perito digital, em especial, esse tipo de discussão exige domínio técnico e sensibilidade jurídica: é preciso demonstrar claramente o que será extraído, como será tratado e por que tal dado é imprescindível para a elucidação dos fatos — sempre com base em normas técnicas, princípios de cadeia de custódia e respaldo legal.
Provas Digitais de Fontes Fechadas: Conceito e Riscos
Fontes fechadas referem-se a sistemas e dispositivos cujos dados não são publicamente auditáveis ou acessíveis por partes imparciais, como sistemas de geolocalização de aplicativos proprietários ou registros armazenados apenas nos servidores da empresa. Ainda que possam refletir a realidade fática, apresentam risco quanto à:
- Falta de cadeia de custódia transparente;
- Impossibilidade de verificação de integridade por terceiros;
- Assimetria de acesso entre as partes.
Tais características exigem cautela na análise pericial e jurídica, a fim de evitar violação ao contraditório e à ampla defesa (CF, art. 5º, LV).
Para profissionais que atuam com provas digitais, como peritos, assistentes técnicos e advogados, esse entendimento exige atenção a alguns pontos:
- Análise crítica da origem da prova digital: se o dado é oriundo de fonte fechada, é necessário esclarecer isso nos autos.
- Recomendação de perícia técnica para verificar se houve manipulação, edição, falha de sistema ou ausência de cadeia de custódia.
- Solicitação de acesso irrestrito ou espelhamento da base de dados para preservar a paridade de armas.
- Crítica fundamentada quando a prova for unilateral, sem transparência, ou quando a geolocalização for usada de forma isolada para justificar faltas, atrasos ou demissões por justa causa.
O posicionamento do TRT-15 reforça a importância de se avaliar a efetiva contribuição da prova digital no contexto processual, ao mesmo tempo em que exige que sua apresentação esteja cercada de garantias técnicas e jurídicas. A admissibilidade, portanto, não é automática: depende da forma como foi obtida, preservada e utilizada. No cenário atual, urge o desenvolvimento de protocolo técnico-jurídico de tratamento de provas digitais no processo do trabalho, especialmente frente ao crescimento do controle digital do trabalho por aplicativos, softwares e sistemas de rastreamento.
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