O Caso Cris Pereira e a Falsa Acusação

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

“A prova técnica é o fio que sustenta a credibilidade da Justiça. Quando ela falha, o processo inteiro pode se corromper.”

O caso envolvendo o humorista Cris Pereira, conhecido por seu trabalho na “Praça é Nossa”, ganhou grande repercussão nacional após sua condenação a 18 anos de prisão por estupro de vulnerável, envolvendo a filha de um antigo relacionamento. Contudo, uma análise atenta dos elementos processuais e periciais revela uma série de incongruências e fragilidades técnicas que reacendem o debate sobre o uso de laudos psicológicos em processos penais e a presunção de inocência como princípio constitucional.

Da absolvição à condenação

De acordo com as informações divulgadas, o humorista havia sido absolvido em primeira instância após a realização de perícia oficial que não constatou sinais físicos ou psicológicos de abuso na criança. O exame técnico destacou a ausência de ato libidinoso, concluindo que não havia compatibilidade anatômica com a narrativa inicial. Apesar disso, em fase recursal, o Ministério Público obteve nova condenação com base em laudo psicológico particular, elaborado por profissional contratado pela genitora da menor, o que acendeu alertas entre especialistas da área jurídica e pericial.

A controvérsia do laudo psicológico

O ponto mais polêmico do caso recai sobre a validade e a metodologia do laudo utilizado na condenação. Relata-se que o psicólogo responsável teria formulado perguntas sugestivas, como:

“Como você se sente diante do homem mau Pereira?”

Tal formulação é eticamente questionável, pois viola o princípio da neutralidade pericial e induz a resposta da criança, contaminando o relato o que demonstra a gravidade da situação sob o ponto de vista técnico. Além disso, o vínculo entre a equipe pericial particular e a defesa da acusadora compromete a imparcialidade da prova, afrontando o art. 158 e seguintes do Código de Processo Penal, que exigem rigor técnico e imparcialidade na produção da prova pericial.

Alienação parental e o impacto das falsas acusações

Falsa acusação ocorre quando alguém atribui a outra pessoa a prática de um crime sabendo que isso é mentira ou sem provas suficientes. Pode surgir em contextos judiciais, familiares, trabalhistas, midiáticos ou em redes sociais — e seus efeitos são devastadores, tanto para quem é acusado quanto para quem acusa injustamente.

No ordenamento jurídico brasileiro, o tema se relaciona diretamente a crimes como:

  • Denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal) – quando alguém acusa um inocente, provocando investigação ou processo. Pena: reclusão de 2 a 8 anos e multa.
  • Comunicação falsa de crime (art. 340 do Código Penal) – quando se comunica à autoridade a ocorrência de um crime inexistente. Pena: detenção de 1 a 6 meses ou multa.
  • Falso testemunho, falsidade documental e perícia falsa – quando há manipulação de elementos probatórios.

Além da esfera criminal, existe também responsabilidade civil, que pode gerar indenização por danos morais, reputacionais e materiais, além de sequelas psicológicas graves.

O caso Cris Pereira

O humorista Cristiano Pereira da Silva, conhecido como Cris Pereira, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a 18 anos, 4 meses e 15 dias de prisão em regime fechado pelo crime de estupro de vulnerável, envolvendo a filha de um antigo relacionamento.

Entretanto, o caso apresenta particularidades importantes:

  • Em primeira instância, Cris Pereira foi absolvido, após a perícia oficial não encontrar indícios físicos ou psicológicos compatíveis com abuso.
  • O juiz daquela fase destacou inconsistências no relato da criança e determinou a investigação do psicólogo particular que havia emitido parecer divergente.
  • A condenação em segunda instância baseou-se em laudo psicológico particular, elaborado por profissional contratado pela mãe da criança, o que gerou controvérsia quanto à imparcialidade da prova.
  • O processo corre em segredo de justiça, o que limita o acesso público aos autos e laudos.
  • A defesa sustenta a tese de falsa acusação e alienação parental, apontando vícios técnicos no laudo psicológico e falta de controle metodológico.

Um dos aspectos mais questionados no caso foi a conduta do profissional ao induzir a suposta vítima durante a entrevista, especialmente por meio de perguntas sugestivas e direcionadas, como:

“Como você se sente diante do homem mau Pereira?”

Essa forma de condução fere as diretrizes da entrevista forense com crianças, previstas na Resolução CFP nº 006/2019, além de violar o princípio da neutralidade técnica. A ausência do controle de cadeia de custódia do material torna o laudo questionável do ponto de vista pericial.

Alienação parental e o impacto da falsa acusação

Em contextos de disputa familiar, a alienação parental pode criar narrativas falsas ou distorcidas, principalmente em crianças pequenas. A Lei 12.318/2010, que trata do tema, reconhece como alienação qualquer manipulação psicológica que prejudique o vínculo entre o menor e o outro genitor.

Quando essa manipulação é usada para criar falsas memórias ou reforçar acusações sem base técnica, o resultado pode ser devastador: um inocente condenado e uma criança traumatizada por narrativas induzidas.

O papel da perícia forense e a importância da cadeia de custódia

A perícia psicológica forense deve seguir protocolos rigorosos, com entrevistas gravadas, linguagem neutra, instrumentos científicos e ausência de vínculo entre perito e partes. A cadeia de custódia da prova pericial, prevista na Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), é essencial para garantir que os dados coletados sejam autênticos, rastreáveis e íntegros.

Quando o laudo é produzido fora desses parâmetros — sem controle, supervisão ou transparência — ele perde validade probatória. O perito, nesse caso, deixa de ser auxiliar da Justiça e passa a atuar como agente de interesse, o que é vedado ética e legalmente.

Entre o cancelamento social e o julgamento público

O caso Cris Pereira expõe também o fenômeno do julgamento social antecipado. Antes do trânsito em julgado, o humorista foi afastado de programas e perdeu contratos, sendo condenado socialmente. Isso contraria o art. 5º, LVII, da Constituição Federal, que assegura que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. O dano reputacional, em casos assim, é praticamente irreversível — ainda que a inocência venha a ser reconhecida futuramente.

A falsa acusação é um crime que destrói em silêncio — destrói vidas, reputações e confiança na Justiça. Mas também exige cautela: o sistema jurídico deve proteger as verdadeiras vítimas, sem permitir que acusações infundadas sirvam como instrumento de vingança ou manipulação.

Em uma sociedade onde a palavra tem poder para construir ou destruir reputações, a falsa acusação se torna uma das formas mais silenciosas e cruéis de injustiça. Ela corrói a confiança, dilacera famílias e mancha o próprio conceito de Justiça que deveria proteger tanto o inocente quanto o vulnerável.

A Justiça criminal é como uma balança sensível: de um lado, o direito da vítima; do outro, a dignidade do acusado. Quando um laudo falha, quando uma perícia é conduzida sem rigor técnico, ou quando o julgamento é feito antes da sentença, a balança pende perigosamente para o erro irreparável. E o erro judicial — ao contrário da culpa — não se cumpre, se carrega.

A perícia forense, nesse contexto, é o elo entre o fato e a verdade. É o espaço onde a ciência precisa falar mais alto que a emoção. Mas isso exige profissionais éticos, preparados e conscientes de que cada linha escrita em um laudo pode decidir o destino de uma vida inteira.

Casos como o de Cris Pereira revelam algo além do processo penal: expõem a fragilidade humana diante do poder da narrativa. Porque, no fim, o verdadeiro perigo não é apenas ser acusado injustamente — é ser julgado antes que a verdade tenha a chance de ser ouvida.

Talvez a maior lição que a perícia forense possa nos oferecer seja esta:

Buscar a verdade não é escolher um lado — é escolher a Justiça.


📚 Fontes consultadas
[1] Ouvidoria UFES – Denunciação Caluniosa
[2] Legislação Federal – Senado Federal
[3] Prudente Advocacia Criminal – Falsas Acusações de Abuso Sexual
[4] Senado Notícias – Projeto sobre Denúncia Falsa
[5] BNews – Caso Cris Pereira
[6] Diário de Santa Maria – Defesa do Humorista
[7] Bei – Juiz Absolveu e Mandou Investigar Psicólogo
[8] Portal do Holanda – Condenação de Cris Pereira