Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
A Força do Blockchain na Autenticação das Provas Digitais e o Papel do Parecer Técnico
O avanço da tecnologia trouxe novos desafios à produção e à verificação de provas no ambiente digital. Arquivos eletrônicos, mensagens, e-mails, registros de sistemas e metadados passaram a ocupar o centro das discussões judiciais, exigindo dos operadores do Direito e dos peritos forenses instrumentos seguros para garantir autenticidade, integridade e confiabilidade desses elementos. Nesse contexto, a tecnologia Blockchain emerge como uma aliada robusta na autenticação e preservação da cadeia de custódia digital, conferindo às provas um grau de imutabilidade e rastreabilidade antes inalcançável por métodos convencionais. O futuro da perícia digital e da arbitragem técnica caminha para a integração entre segurança criptográfica e rigor metodológico, transformando o Blockchain em uma ferramenta de confiança, transparência e previsibilidade jurídica.
O Blockchain como Registro Imutável e Auditável
A Blockchain, ou “cadeia de blocos”, é um sistema de registro distribuído que funciona como um livro contábil público e descentralizado, no qual cada transação é criptograficamente vinculada à anterior. Cada bloco contém um hash (impressão digital matemática) que garante a imutabilidade das informações registradas — qualquer alteração, por mínima que seja, rompe a sequência criptográfica e torna o sistema capaz de detectar adulterações.
Em termos periciais, isso significa que a integridade da prova digital pode ser comprovada de forma objetiva e verificável, independentemente da confiança em um intermediário. Ao registrar o hash do arquivo digital (por exemplo, de um documento, áudio, vídeo ou conversa de aplicativo) em uma Blockchain pública, é possível comprovar que aquele conteúdo existia em determinada data e não foi alterado desde então.
Cadeia de Custódia e Valor Probatório
A cadeia de custódia é um dos pilares da perícia digital e está expressamente prevista no art. 158-B1 do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/20192 (Pacote Anticrime). Ela estabelece o dever de rastrear todas as etapas do manuseio da prova, desde a coleta até a apresentação em juízo, assegurando que o elemento probatório permaneça íntegro e livre de manipulação.
Quando uma prova digital é registrada em Blockchain, o próprio protocolo criptográfico atua como uma camada adicional da cadeia de custódia, servindo de carimbo temporal e verificador de autenticidade. Dessa forma, ainda que o arquivo original esteja armazenado em meio físico ou digital distinto, o registro hash no Blockchain funciona como selo de autenticidade técnica, permitindo a reconstrução cronológica e a verificação independente da integridade.
O Parecer Técnico como Ponte entre a Tecnologia e o Direito
O parecer técnico-pericial assume papel essencial nesse contexto. Embora o Blockchain forneça a base tecnológica para garantir autenticidade e imutabilidade, é o perito ou assistente técnico quem traduz esses elementos em linguagem jurídica compreensível ao juízo.
O parecer técnico deve:
- Demonstrar como a prova foi coletada e como o hash foi gerado;
- Indicar a rede Blockchain utilizada (pública, privada ou consorciada);
- Apresentar evidências técnicas da imutabilidade, explicando o mecanismo criptográfico;
- Fundamentar o valor probatório com base em normas técnicas (ABNT NBR ISO/IEC 270373, 270414, 270425, 270436) e referências legais;
- Correlacionar a confiabilidade técnica com a validade jurídica, destacando o art. 3697 do CPC, que admite qualquer meio lícito de prova.
Assim, o parecer técnico atua como elo de legitimação entre o dado tecnológico e o entendimento judicial, garantindo que a prova seja compreendida, contextualizada e aceita com respaldo técnico e normativo.
Aplicações Práticas e Jurisprudência Emergente
Diversos tribunais brasileiros têm admitido provas registradas em Blockchain, especialmente em litígios envolvendo propriedade intelectual, contratos eletrônicos, fraudes digitais e comunicações eletrônicas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu, em precedentes recentes, a validade de elementos digitais acompanhados de laudo técnico e carimbo temporal, desde que demonstrada a integridade dos dados.
No campo forense, é cada vez mais comum o uso de Blockchain para notarização de e-mails, prints, registros de metadados e áudios, fortalecendo a cadeia de custódia e reduzindo a margem de contestação sobre autenticidade e temporalidade.
A tecnologia Blockchain representa uma revolução silenciosa no campo probatório, oferecendo meios objetivos de assegurar a autenticidade e a integridade das provas digitais. Contudo, seu potencial só se concretiza plenamente quando acompanhado de procedimentos periciais adequados e parecer técnico qualificado, que contextualizam e validam o uso dessa tecnologia no ambiente jurídico.
Código de Processo Civil (CPC)
Artigo 369
“As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.”
Comentário técnico:
O Blockchain é meio moralmente legítimo e tecnicamente idôneo para atestar autenticidade e integridade de dados — portanto, plenamente admissível como prova. O parecer técnico serve justamente para demonstrar como e por que o meio é confiável, tornando-o compreensível ao juízo.
Artigo 4118, incisos II e III
São autênticos os documentos quando:
II – o tabelião reconhecer a firma do signatário;
III – não houver impugnação da parte contra quem foi produzido.
Comentário técnico:
Embora o Blockchain não seja um ato notarial tradicional, ele cumpre função análoga à autenticação — ao registrar um hash imutável e carimbo temporal, comprova a existência e a integridade de um documento. O parecer técnico pode demonstrar equivalência funcional, apoiando-se no princípio da autenticidade digital por equivalência tecnológica.
Código de Processo Penal (CPP)
Artigos 158-A a 158-F9 (introduzidos pela Lei nº 13.964/2019 — “Pacote Anticrime”)
Esses dispositivos instituem formalmente a cadeia de custódia da prova no processo penal.
O art. 158-B é o mais relevante:
“Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”
Comentário técnico:
O Blockchain, ao registrar cada movimentação ou hash de arquivo digital, atua como camada tecnológica da cadeia de custódia, assegurando rastreabilidade e integridade. O parecer técnico-pericial deve correlacionar o uso do Blockchain com essas exigências legais, demonstrando como o registro cumpre a função de preservação cronológica e documental da prova.
Lei nº 13.105/2015 – CPC (novamente)
Art. 464 e seguintes
Dispõem sobre a prova pericial.
O §1º do art. 473 é crucial:
“O laudo pericial deverá conter:
I – a exposição do objeto da perícia;
II – a análise técnica ou científica realizada;
III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área.”
Comentário técnico:
Esse dispositivo ampara diretamente o parecer técnico-pericial sobre Blockchain.
O perito deve descrever:
- o objeto periciado (prova digital);
- o método (registro hash e validação em rede Blockchain);
- e demonstrar que o método é aceito pela comunidade técnica, conforme normas da ISO e ABNT.
Lei nº 12.965/2014 – Marco Civil da Internet
Artigo 7º, inciso III
Garante a inviolabilidade e o sigilo do fluxo das comunicações pela internet, salvo por ordem judicial.
Artigo 10
Determina que a guarda e a disponibilização de registros devem preservar a integridade, autenticidade e cadeia de custódia dos dados.
Comentário técnico:
A utilização do Blockchain como camada de autenticação reforça o cumprimento do art. 10, garantindo que os dados preservem sua integridade e origem comprovável. O parecer técnico demonstra o atendimento a essas exigências, evidenciando que não houve manipulação de conteúdo.
Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
Artigos 6º (Princípios) e 46 (Segurança e Boas Práticas)
Determinam que o tratamento de dados pessoais deve observar princípios de transparência, segurança, prevenção e responsabilização, bem como o uso de medidas técnicas e administrativas capazes de proteger os dados de acessos não autorizados e situações acidentais ou ilícitas.
Comentário técnico:
O Blockchain, ao registrar evidências com anonimização e imutabilidade criptográfica, está alinhado aos princípios da segurança e transparência. O parecer técnico deve indicar como os dados foram tratados sem expor dados pessoais identificáveis, respeitando a LGPD e preservando a finalidade probatória.
Princípios Jurídicos Aplicáveis
- Princípio da Legalidade Probatória Ampliada – o juiz pode admitir qualquer meio idôneo e não ilícito de prova (CPC, art. 369);
- Princípio da Autenticidade Digital – o que é tecnicamente comprovável pode ser juridicamente reconhecido;
- Princípio da Proporcionalidade e Eficiência Processual – o Blockchain evita duplicidade de perícias e reduz custos, otimizando a marcha processual.
Síntese Prática
| Base Legal | Função na Prova Blockchain | Aplicação no Parecer Técnico |
|---|---|---|
| CPC, art. 369 | Admissibilidade de meios lícitos e legítimos | Fundamenta a validade jurídica do Blockchain |
| CPP, art. 158-B | Cadeia de custódia da prova | Demonstra rastreabilidade técnica via Blockchain |
| CPC, art. 473, §1º | Estrutura e método pericial | Exige explicação do método e validação técnica |
| Marco Civil, art. 10 | Autenticidade e integridade de registros | Confirma imutabilidade e origem do dado |
| LGPD, art. 46 | Segurança e confidencialidade dos dados | Garante proteção de dados nas evidências digitais |
| Normas ABNT/ISO 27037+ | Padrões técnicos internacionais | Legitima a metodologia usada no parecer |
Referências Essenciais
- art. 158-B do Código de Processo Penal https://www.jusbrasil.com.br/topicos/250911187/artigo-158b-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941 ↩︎
- Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm ↩︎
- ABNT NBR ISO/IEC 27037 https://www.jusbrasil.com.br/artigos/norma-abnt-nbr-iso-iec-27037-2013-o-que-e-e-por-que-e-importante-para-a-investigacao-cibernetica-e-forense-digital/1805126809 ↩︎
- ABNT NBR ISO/IEC 27041 https://www.iso.org/obp/ui/#iso:std:iso-iec:27041:ed-1:v1:en ↩︎
- ABNT NBR ISO/IEC 27042 https://www-iso-org.translate.goog/standard/44406.html?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc ↩︎
- ABNT NBR ISO/IEC 27043 https://goo.su/aePKHc ↩︎
- art. 369 do CPC https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28893070/artigo-369-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
- Artigo 411, incisos II e III https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28892674/inciso-ii-do-artigo-411-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
- Artigos 158-A a 158-F https://goo.su/YvVNAk ↩︎
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