A Nova Interpretação da Lei do Inquilinato e a “Brecha” que Dificulta o Despejo Imediato

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O que mudou e como isso afeta locadores e inquilinos

A Lei nº 8.245/911 sempre permitiu que o locador ajuizasse ação de despejo por falta de pagamento. No entanto, uma leitura mais recente de tribunais, somada à aplicação prática dos prazos processuais, criou um cenário em que o despejo “imediato” especialmente em atrasos de até três meses deixou de ser viável. Esse fenômeno não decorre de uma alteração formal na lei, mas sim de interpretações judiciais e ajustes procedimentais que ampliaram, na prática, o tempo para a desocupação.

a possibilidade de despejo por falta de pagamento

A Lei do Inquilinato prevê no art. 9º, III2, e no art. 59, §1º, IX3, que o locador pode pedir o despejo quando o inquilino deixa de pagar o aluguel e encargos.

Contudo, o sistema jurídico brasileiro busca equilibrar o direito do proprietário à retomada do imóvel com o direito social à moradia e à ampla defesa. É aí que entram os prazos e as interpretações que acabam retardando a efetividade do despejo.

o direito de “purgar a mora”

O art. 62, II, da Lei nº 8.245/914 garante ao locatário, após ser citado na ação de despejo, o direito de “purgar a mora” em até 15 dias, pagando:

  • aluguéis vencidos,
  • encargos,
  • juros,
  • multa contratual,
  • custas e honorários.

Ao realizar esse pagamento, o inquilino evita o despejo, e o processo é extinto. Essa regra sempre existiu. O que mudou foi a forma como os tribunais interpretam o tempo e a extensão dessa proteção.

o impacto prático dos prazos processuais

Nos últimos julgados, Cortes estaduais e até Turmas Recursais passaram a reforçar que:

  • o prazo de 15 dias só começa a contar após a citação efetiva,
  • citação que demora: oficiais de justiça enfrentam filas, acúmulo de processos e tentativas frustradas,
  • juízes tendem a garantir tentativas adicionais de citação, reforçando o direito de defesa.

Resultado: mesmo sem pagar, o inquilino permanece no imóvel por 60 a 90 dias desde o ajuizamento da ação — e esse período costuma equivaler justamente a três meses de atraso.

A interpretação que consolidou a “brecha”

Em algumas decisões recentes, os tribunais entenderam que:

  • não é cabível despejo liminar (desocupação em 15 dias) quando o atraso é inferior ou próximo ao período médio de tramitação do processo;
  • o despejo liminar (art. 59, §1º, IX) só deve ser concedido quando há garantia suficiente, ou quando o atraso é mais longo e demonstra risco ao locador;
  • atrasos pequenos — como 1 a 3 meses — não comprovam urgência na ótica de muitos magistrados.

Essa interpretação cria, na prática, um “teto de tolerância” informal: inadimplência inicial dificilmente gera despejo rápido.

O efeito colateral: uma “zona de amortecimento” de três meses

Como consequência da jurisprudência mais protetiva:

  • Locadores enfrentam uma espécie de período mínimo de inadimplência antes de conseguirem uma resposta efetiva.
  • Inquilinos ganham margem para regularizar suas finanças, sabendo que dificilmente serão removidos antes de três meses.

É uma brecha? Muitos operadores do direito entendem que sim — uma brecha interpretativa, não legislativa.

Por que isso está acontecendo agora?

Alguns fatores contribuíram:

a) Sensibilidade pós-pandemia

A jurisprudência ficou mais cautelosa com decisões que possam gerar vulnerabilidade habitacional.

b) Reforço ao contraditório e à ampla defesa

A tendência atual é ampliar oportunidades de pagamento e mediação.

c) Saturação do Judiciário

A lentidão natural dos processos reforça a ideia de que o despejo liminar deve ser excepcional.

O que locadores e advogados podem fazer

Apesar do cenário, há estratégias eficazes:

✔ Incluir no contrato garantias robustas: Fiança, seguro-fiança e caução aumentam a probabilidade de liminar.

✔ Demonstrar risco concreto: Provar que o imóvel é essencial ao locador (ex.: uso próprio) aumenta a chance de urgência.

✔ Produzir prova pré-processual: Notificações extrajudiciais podem demonstrar má-fé e reforçar a necessidade de medida liminar.

✔ Buscar acordo extrajudicial: Muitas vezes, entregar ao inquilino alternativas de parcelamento evita longos processos.

O que mudou não foi a letra da Lei do Inquilinato, mas a postura interpretativa dos tribunais, que passou a:

  • reforçar o direito de purgar a mora,
  • exigir maior fundamentação para despejos liminares,
  • valorizar a proteção habitacional,
  • prolongar, na prática, o prazo para desocupação.

Essa convergência deu origem ao que muitos chamam de “brecha” um intervalo de cerca de três meses em que o locador encontra forte resistência judicial para obter desocupação imediata.

Na prática, o cenário atual exige planejamento contratual, boa documentação e estratégias processuais mais inteligentes para evitar prejuízos, sempre conciliando o direito do locador com a proteção legítima do inquilino.

  1. Lei nº 8.245/91 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm ↩︎
  2. Lei do Inquilinato prevê no art. 9º, III, https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11733887/inciso-iii-do-artigo-9-da-lei-n-8245-de-18-de-outubro-de-1991 ↩︎
  3. Lei do Inquilinato art. 59, §1º, IX https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11729034/inciso-ix-do-paragrafo-1-do-artigo-59-da-lei-n-8245-de-18-de-outubro-de-1991 ↩︎
  4. art. 62, II, da Lei nº 8.245/91 https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11728853/inciso-ii-do-artigo-62-da-lei-n-8245-de-18-de-outubro-de-1991 ↩︎