Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.
A discussão sobre biometria e prova de vida ganhou força nos últimos anos, especialmente após o avanço das tecnologias digitais e a ampliação dos serviços remotos do INSS. Na superfície, parece um tema meramente operacional. Mas, quando olhamos mais de perto, percebemos uma verdadeira disputa silenciosa que afeta milhões de segurados e pode definir o futuro da proteção social no Brasil.
Afinal, até que ponto a biometria é suficiente para garantir a autenticidade? Em que momento a prova de vida se torna indispensável? E o que acontece quando falhas técnicas colocam em risco o benefício de alguém que depende dele para sobreviver?
Por que existe prova de vida?
A prova de vida nasceu com um propósito simples: evitar pagamentos indevidos. Em um sistema previdenciário enorme como o brasileiro, casos de pagamentos após o falecimento do segurado geravam prejuízos bilionários. A solução foi exigir periodicamente que o beneficiário comprovasse estar vivo.
Antes, isso significava ir ao banco, enfrentar filas e apresentar um documento com foto. Hoje, entrou em cena a biometria digital impressão digital, reconhecimento facial e validações automatizadas.
Biometria: a promessa da segurança automática
A biometria surgiu como a grande promessa de modernização: rápida, prática e “infalível”. Na teoria, ninguém pode imitar sua digital ou seu rosto. Na prática… a história é um pouco diferente.
Para entender isso, pense na biometria como uma fechadura eletrônica de última geração. Ela funciona bem até que falhe. E quando falha, o impacto é enorme.
Principais problemas envolvendo biometria no INSS:
- Erros de leitura facial, especialmente em idosos, cuja face se altera mais ao longo do tempo.
- Sensores de digitais que não reconhecem impressões gastas, comuns em trabalhadores rurais e pessoas que lidam com produtos químicos.
- Falhas de integração entre bases de dados, como INSS, Denatran e bancos.
- Reconhecimento prejudicado por baixa qualidade da câmera do celular do segurado.
Ou seja: a biometria é eficaz, mas não infalível. E quando ela falha, acende-se a luz vermelha.
Prova de vida: o que muda com as novas regras?
Desde 2023, o INSS mudou a lógica da prova de vida: o ônus deixou de ser do segurado. Em vez de exigir que a pessoa comprove que está viva, o próprio sistema passou a verificar sua atividade com base em acesso ao aplicativo gov.br; uso da biometria em serviços públicos; assinatura digital; consultas no SUS; movimentações bancárias; atualizações no CadÚnico; entre outros.
Essa mudança é positiva e humanizada. Porém, coloca a biometria e os sistemas digitais no centro da equação e, por consequência, os riscos também mudam de lugar.
biometria x prova de vida
A disputa não é entre o segurado e o INSS, mas entre duas tecnologias com objetivos semelhantes, mas metodologias diferentes:
- A biometria tenta confirmar quem você é.
- A prova de vida tenta confirmar se você está ativo no mundo real.
Quando essas ferramentas trabalham juntas, o sistema flui. Quando entram em conflito, nasce o risco de um dos maiores problemas para o segurado: o bloqueio indevido do benefício.
Imagine uma pessoa idosa, com 80 anos, vivendo em zona rural, sem celular moderno e com digitais difíceis de capturar. Se a biometria falha e o sistema não encontra outras “pegadas digitais” da sua vida civil, o benefício pode entrar no radar de suspensão.
Esse é o cerne da batalha invisível: a vida real tentando provar que existe dentro de sistemas que nem sempre conseguem enxergá-la.
O impacto jurídico e probatório: o que está em jogo?
Do ponto de vista jurídico, biometria e prova de vida se tornaram elementos probatórios de alta relevância. E, como toda prova, precisam ser: verificáveis, auditáveis, tecnicamente confiáveis, aderentes à LGPD, preservadas dentro de cadeia de custódia digital adequada.
A grande questão é: quando a tecnologia falha, quem assume o risco?
O segurado não pode ser penalizado por inconsistências técnicas, falhas de banco de dados ou sistemas que não dialogam entre si. Essa responsabilidade é administrativa, e não individual.
Nos tribunais, já é crescente o número de ações envolvendo: bloqueio indevido de benefício; falhas no reconhecimento facial; inconsistências na base biométrica; ausência de meios alternativos de comprovação; violação à boa-fé objetiva e à dignidade da pessoa humana.
interoperabilidade, blockchain e biometria comportamental
O caminho natural é que o sistema previdenciário avance para um modelo híbrido, onde a prova de vida não dependerá apenas de um rosto reconhecido por câmera, mas de um conjunto de indicadores inteligentes. Nesse cenário, a biometria deixa de ser a “protagonista solitária” e passa a compor um ecossistema de autenticação mais robusto.
segurança não pode excluir pessoas
A batalha entre biometria e prova de vida não é sobre tecnologia, mas sobre pessoas. Segurança é essencial, mas nunca pode ser usada para afastar justamente quem deveria ser protegido.
O desafio do INSS e de qualquer sistema previdenciário moderno é construir mecanismos confiáveis sem criar barreiras para idosos, pessoas com deficiência, trabalhadores rurais e populações vulneráveis. A tecnologia deve ser ponte, não muro. E, no fim das contas, a verdadeira prova de vida de um sistema público está na sua capacidade de garantir direitos, e não de complicá-los.
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