Provas Sob Suspeita: STJ Anula 1.670 Prontuários por Violação de Garantias

Por Silvana de Oliveira

A decisão proferida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 195.496, representa um marco relevante na delimitação dos limites da investigação criminal, especialmente no que se refere à chamada “pesca probatória” — prática vedada no ordenamento jurídico por afrontar direitos e garantias fundamentais.

1. Conceito de Pesca Probatória e sua Rejeição no Processo Penal

Pesca probatória (ou fishing expedition) consiste na busca indiscriminada e genérica por elementos de prova, sem que haja uma suspeita concreta ou fundada, contrariando o princípio do devido processo legal, da legalidade e da proteção à intimidade e privacidade, especialmente em ambientes sensíveis como o médico-hospitalar.

No caso em análise, o STJ reconheceu a existência dessa prática quando houve a autorização judicial de busca e apreensão de 1.670 prontuários médicos sem a devida individualização, baseando-se apenas na suspeita genérica de que a médica pudesse ter antecipado mortes de pacientes ao longo de um período de mais de sete anos.


2. Fundamentação da Decisão: Prova Ilícita e Ausência de Justa Causa

A Turma decidiu, por maioria, pela nulidade das provas obtidas a partir da busca e apreensão, entendendo que a autorização judicial foi genérica e desproporcional, sem delimitação suficiente para justificar a violação da intimidade dos pacientes e dos profissionais envolvidos.

Essa decisão está alinhada ao disposto no artigo 5º, incisos X e LVI da Constituição Federal, que garantem a inviolabilidade da intimidade e a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos.

Além disso, o processo principal, que originou a investigação, culminou na absolvição da médica por ausência de materialidade e autoria, o que reforça a ausência de justa causa para o prosseguimento das outras 80 investigações derivadas.

3. Aplicação da Lei 14.836/2024

O empate na votação (2 a 2) foi resolvido com base na Lei 14.836/2024, a qual dispõe que, em caso de empate em julgamento de habeas corpus em órgãos colegiados, deve-se decidir em favor da liberdade do réu, aplicando-se o princípio do in dubio pro reo.

Esse desfecho reforça o caráter garantista da jurisdição criminal no Brasil, que preza pela liberdade como regra e a prisão como exceção, e destaca o papel das Cortes Superiores na proteção contra abusos investigativos.

4. Divergência no Julgamento: Voto Vencido

Os ministros Ribeiro Dantas (relator) e Messod Azulay divergiram ao entender que não havia pesca probatória, justificando que a medida teve por base um contexto delimitado (tempo, local e tipo de pacientes – os que morreram na UTI).

Essa posição, embora tecnicamente estruturada, mostra uma visão mais extensiva dos poderes de investigação do Ministério Público e da polícia, mas que, no entendimento majoritário, não respeitou os limites da razoabilidade e da especificidade exigidas para autorizações invasivas como a quebra de sigilo médico-hospitalar.

5. Implicações da Decisão

Com a anulação das provas, o Ministério Público do Paraná ainda poderá requerer novo acesso aos prontuários, desde que fundamente adequadamente sua necessidade com base em elementos concretos e individualizados.

Essa decisão impõe um freio à atuação investigativa genérica, sobretudo quando ela pode gerar devassas indiscriminadas em direitos sensíveis, como os dados de saúde, e reafirma que a persecução penal deve respeitar limites constitucionais e legais, sob pena de nulidade das provas e prejuízo irreversível à credibilidade do processo penal.

O julgamento reafirma a importância de se proteger os direitos fundamentais no curso de investigações criminais, mesmo diante de casos graves. A decisão da 5ª Turma do STJ sinaliza para o sistema de Justiça Criminal que a busca da verdade real não pode se sobrepor à legalidade, sendo imprescindível que todas as diligências sejam amparadas por fundamentos concretos e respeitem os princípios constitucionais do devido processo legal, da intimidade e da presunção de inocência.


STJ vê pesca probatória e anula provas contra médica acusada de antecipar mortes em UTI

São nulas as provas decorrentes da busca e apreensão de 1.670 prontuários médicos do Hospital Evangélico de Curitiba que embasaram mais de 80 inquéritos e ações penais contra uma médica acusada de antecipar mortes de pacientes, uma vez que houve no caso a prática de pesca probatória.

Pesca probatória ocorreu no acesso a prontuários de pacientes que morreram na UTI em que a médica atuava

A conclusão é da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso em Habeas Corpus ajuizado pela defesa da médica.

A decisão favorável à defesa se deu porque a 5ª Turma registrou empate por 2 votos a 2, já que o desembargador convocado Carlos Cini Marchionatti não pôde votar por não ter visto a sustentação oral. Aplicou-se a Lei 14.836/2024.

Prevaleceu o voto divergente do ministro Joel Ilan Paciornik, acompanhado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Para eles, a ordem que autorizou a busca e apreensão dos prontuários foi genérica e configurou pesca probatória.

Pesca probatória

O Ministério Público do Paraná pediu o acesso ao elevado número de prontuários de pacientes que morreram na unidade de terapia intensiva (UTI) do hospital por suspeitar que eles poderiam ter tido a morte acelerada por decisão da médica.

Os prontuários se referem ao período de 1º de janeiro de 2006 a 23 de fevereiro de 2013. No processo principal, que originou a investigação, a médica acabou absolvida por ausência de comprovação da materialidade e da autoria delitiva.

Ainda assim, a investigação gerou outras 80 persecuções criminais por homicídio doloso e qualificado.

Com a nulidade dessas provas reconhecida, agora o MP-PR poderá pedir nova decisão judicial de acesso a prontuários, desde que justificando a necessidade com base em informações constantes nas investigações.

Voto vencido

Ficaram vencidos os ministros Ribeiro Dantas, relator do recurso em Habeas Corpus, e Messod Azulay. Para eles, não há pesca probatória que justifique a anulação da decisão de busca e apreensão.

Isso porque a apuração se limitou a período de tempo certo, ainda que amplo, referiu-se a parcela específica do hospital, apenas para verificar a possível prática criminosa quanto a pacientes que, naquele contexto, foram a óbito.

RHC 195.496

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-abr-08/stj-ve-pesca-probatoria-e-anula-provas-contra-medica-acusada-de-antecipar-mortes/