Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) inaugurou um importante precedente jurídico ao admitir a possibilidade de nomeação de um inventariante digital para gerir os dados armazenados em dispositivos eletrônicos de pessoas falecidas.
O julgamento, inédito na jurisprudência brasileira, decorreu de um caso envolvendo o falecimento de membros de uma família em um acidente de helicóptero em São Paulo, em 2016. As inventariantes buscavam acesso a três tablets pertencentes às vítimas, com o objetivo de identificar bens de valor econômico ou afetivo que poderiam integrar o espólio.
A decisão: preservação da intimidade como eixo central
A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que o acesso direto pelos herdeiros ou pela própria fabricante dos dispositivos, a Apple, poderia expor informações personalíssimas dos falecidos, violando seus direitos de personalidade.
Diante dessa sensibilidade, a ministra propôs a criação do inventariante digital — um perito especializado, designado pelo juiz, com a função de acessar os aparelhos, filtrar os conteúdos e entregar ao processo apenas as informações necessárias para a composição do inventário.
Assim, o inventariante digital não se confunde com o inventariante previsto no Código Civil, que representa o espólio. Trata-se de um auxiliar técnico do juízo, incumbido de garantir equilíbrio entre o direito sucessório e a proteção da intimidade post mortem.
O que é o Inventariante Digital?
O Inventariante Digital é uma figura criada pela jurisprudência, com caráter técnico e não representativo. Ele não administra o espólio, tampouco substitui o inventariante previsto em lei. Sua função é restrita e especializada:
- Acessar dispositivos eletrônicos do falecido (computadores, tablets, celulares, contas digitais);
- Extrair dados relevantes ao inventário, como indícios de bens patrimoniais, contratos, senhas de contas bancárias digitais, documentos ou registros de valor econômico ou afetivo;
- Proteger informações personalíssimas, resguardando mensagens íntimas, dados de saúde ou comunicações privadas que não interessam ao processo sucessório;
- Atuar como perito técnico, prestando contas diretamente ao juiz, de modo semelhante a outros auxiliares da Justiça, como peritos judiciais em grafotecnia, contabilidade ou informática.
Em síntese, o inventariante digital surge como ponte entre o direito sucessório e a realidade tecnológica, garantindo que a herança digital seja tratada com segurança jurídica e respeito à dignidade do falecido.
Divergência no julgamento
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva ficou vencido. Para ele, não há justificativa para diferenciar os bens digitais dos analógicos. Argumentou que os próprios herdeiros já possuem dever de zelar pela intimidade do falecido, podendo o processo tramitar sob segredo de Justiça para reforçar a proteção.
Na visão de Cueva, a decisão da maioria cria um tratamento desigual: uma carta privada poderia ser lida pelos herdeiros, mas uma mensagem eletrônica necessitaria da intervenção de um perito.
Apesar da divergência, prevaleceu a tese de que a nomeação do inventariante digital é medida adequada para assegurar a identificação de bens sem violar o sigilo de informações pessoais.
Impactos e reflexões
A decisão abre espaço para um novo capítulo no direito sucessório, em especial no que diz respeito à herança digital. Em tempos em que grande parte da vida e do patrimônio das pessoas se encontra em dispositivos eletrônicos ou plataformas virtuais, o Judiciário começa a construir parâmetros para compatibilizar sucessão patrimonial e proteção da personalidade.
Além disso, o precedente aponta para a necessidade de:
- Regulamentação legislativa específica sobre herança digital;
- Formação de peritos com expertise em forense digital para atuação como inventariantes digitais;
- Reflexão dos herdeiros e operadores do direito sobre responsabilidades éticas e jurídicas no acesso a dados sensíveis de pessoas falecidas.
O caso julgado no REsp 2.124.4241 projeta efeitos relevantes para o futuro: o inventariante digital poderá se consolidar como uma figura essencial nos processos de inventário em que dados digitais estejam em disputa. Mais do que definir a titularidade de bens, a decisão do STJ chama a atenção para o respeito à intimidade e dignidade da pessoa humana, valores que sobrevivem mesmo após a morte.
- Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-set-09/juiz-pode-nomear-inventariante-digital-para-gerir-dados-de-falecidos-diz-stj ↩︎
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