Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense.
O Padrão Daubert, originado no sistema jurídico norte-americano, tornou-se referência internacional para a avaliação da admissibilidade de provas periciais. Este artigo analisa sua formação, critérios, impactos na avaliação científica de evidências e sua influência em sistemas jurídicos estrangeiros, incluindo reflexões sobre sua aplicação em contextos modernos como forense digital e cadeia de custódia. Busca-se demonstrar como o método Daubert representa uma ferramenta essencial para o controle de qualidade da prova técnica, mitigando riscos de vieses e fortalecendo a racionalidade das decisões judiciais.
A crescente complexidade das demandas judiciais trouxe ao centro do debate a necessidade de critérios mais rigorosos para examinar provas técnicas. Com o avanço da ciência e da tecnologia, a figura do perito passou a desempenhar papel crucial na construção de narrativas probatórias, exigindo do Judiciário instrumentos seguros para avaliar a confiabilidade do material apresentado.
Nesse contexto surge o Padrão Daubert, decorrente do caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc. (1993)1, que redefiniu o entendimento sobre o que constitui ciência válida para fins judiciais. Embora oriundo do direito norte-americano, sua lógica metodológica influenciou diversos ordenamentos, notadamente em análises periciais que exigem rigor metodológico, replicabilidade e transparência — incluindo a prova digital, campo em rápida expansão e frequentemente marcado por vulnerabilidades e falhas procedimentais.
Origem e Desenvolvimento do Padrão Daubert
Antes de Daubert, prevalecia o chamado Frye Standard (Frye v. United States, 1923), que determinava a admissibilidade de evidências científicas com base em sua “aceitação geral” pela comunidade científica.
O caso Daubert rompe com esse paradigma ao introduzir um raciocínio mais dinâmico: para que um laudo ou método seja aceito, não basta ser amplamente utilizado; ele precisa demonstrar validade científica, respaldada por critérios verificáveis.
Posteriormente, os casos General Electric Co. v. Joiner (1997) e Kumho Tire Co. v. Carmichael (1999) ampliaram e consolidaram o escopo do padrão, aplicando-o a todos os tipos de expertise técnica, não apenas ciências exatas.
Os Critérios da Análise Daubert2
O Padrão Daubert se apoia em quatro pilares centrais, utilizados pelo juiz como “gatekeeper” para determinar a admissibilidade da prova pericial:
Testabilidade (Falsificabilidade)
Pergunta-se: o método pode ser testado e reproduzido?
A ciência deve permitir verificação independente — premissa fundamental especialmente em perícias digitais, em que scripts, logs e cadeias de custódia precisam ser auditáveis.
Revisão por Pares e Publicação3
O método utilizado foi submetido ao escrutínio da comunidade científica?
A validação externa reduz riscos de manipulação e aumenta a credibilidade dos achados.
Taxa de Erro Conhecida
Toda metodologia tem margem de falha. No modelo Daubert, espera-se que o perito explicite essa taxa.
Na perícia de informática, por exemplo, é crucial saber a probabilidade de falsos positivos em ferramentas de varredura ou sistemas de hash.
Aceitação Geral na Comunidade Científica4
Embora não seja o único critério, continua relevante.
A aceitação indica maturidade técnica, mas não substitui os demais requisitos.
O Papel do Juiz como Gatekeeper
A partir de Daubert, o juiz assume posição ativa na qualificação da prova técnica. Ele não pode aceitar o laudo como verdade absoluta simplesmente por ter sido produzido por um “especialista”.
Cabe ao magistrado verificar: clareza metodológica, coerência lógica, replicabilidade, integridade procedimental. Essa postura é especialmente relevante em litígios que envolvem tecnologia, algoritmos, criptografia, metadados, blockchain ou outros artefatos digitais.
A Relevância do Daubert na Prova Digital
No universo da prova digital5, o Padrão Daubert tem se mostrado extremamente útil como ferramenta de controle metodológico. Exemplos práticos:
- Cadeia de Custódia: A avaliação de integridade da cadeia de custódia encontra respaldo direto nos critérios de testabilidade, replicabilidade e taxa de erro.
- Logs e Metadados: Métodos de extração devem ser auditáveis; ferramentas de varredura precisam apresentar documentação técnica consistente.
- Análises de Dispositivos Eletrônicos: Imagens forenses que não permitem replicação ou que utilizam softwares sem validação científica violam os requisitos Daubert.
- Perícias Grafo-Documentoscópicas e Assinaturas Digitais: As metodologias empregadas devem demonstrar testes empíricos e literatura de respaldo — ponto sensível em laudos que utilizam técnicas não padronizadas.
Influência do Daubert em Outros Sistemas Jurídicos
Embora não adotado formalmente em muitos países, o raciocínio por trás do Padrão Daubert inspira legislações e decisões judiciais no Brasil e na Europa, sobretudo após o fortalecimento das discussões sobre:
- controle de qualidade da prova técnica,
- transparência metodológica do perito,
- proteção de direitos fundamentais em análises invasivas,
- compatibilidade entre procedimentos periciais e garantias de privacidade (LGPD/GDPR).
No Brasil, enquanto não há norma específica equivalente ao Daubert, suas diretrizes dialogam diretamente com:
- o art. 464 do CPC6,
- a necessidade de motivação técnica dos laudos,
- a avaliação crítica do juiz sobre metodologia,
- e exigências de cadeia de custódia previstas no CPP.
Ainda assim, a doutrina majoritária reconhece que Daubert fortalece a segurança jurídica e a racionalidade probatória.
O Padrão Daubert representa um marco na admissibilidade da prova técnica, fornecendo critérios robustos para avaliar a confiabilidade científica de métodos e conclusões apresentados em juízo. Em um cenário cada vez mais permeado por tecnologias, perícias digitais e disputas envolvendo dados, sua lógica se mostra indispensável.
A implementação de avaliações baseadas em Daubert ainda que de forma indireta fortalece a credibilidade das decisões judiciais, protege a integridade da prova e contribui para que a ciência seja utilizada de maneira responsável e transparente no processo.
| Critério | Padrão Daubert | Cadeia de Custódia | O que têm em comum |
|---|---|---|---|
| Foco principal | Confiabilidade científica do método usado pelo perito | Autenticidade e integridade do vestígio | Garantir evidências confiáveis |
| Objeto analisado | Como a perícia foi feita | O que foi periciado | Controle de qualidade da prova |
| Pergunta-chave | “O método é válido e replicável?” | “O vestígio é íntegro e não adulterado?” | Evitar erros, manipulações e conclusões falsas |
| Natureza | Científica / metodológica | Procedimental / administrativa | Exige documentação transparente |
| Fundamento | Fatores: testabilidade, taxa de erro, revisão por pares, aceitação científica | Etapas formais: coleta, lacre, registro, transporte, armazenamento, análise | Protege o contraditório e a ampla defesa |
| Risco combatido | Métodos pseudocientíficos ou falhos | Provas contaminadas ou alteradas | Aumenta a confiabilidade judicial |
| Impacto na prova digital | Avalia a validade dos softwares e técnicas usadas | Garante que logs e metadados não foram alterados | Essenciais em vestígios eletrônicos voláteis |
| Resultado de falha | Laudo cientificamente inválido | Prova inadmissível ou imprestável | Fragilidade probatória e nulidade potencial |
análise conjunta demonstra que Padrão Daubert e Cadeia de Custódia atuam em dimensões diferentes, mas complementares da prova pericial.
O Padrão Daubert avalia se o método utilizado pelo perito é cientificamente válido, enquanto a Cadeia de Custódia garante que o vestígio analisado permaneceu íntegro, autêntico e rastreável desde a coleta até a apresentação em juízo.
Apesar de distintos, ambos convergem para o mesmo propósito: assegurar que a prova técnica submetida ao processo seja confiável, transparente e juridicamente segura.
- Daubert x Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc., 509 EUA. 579 (1993) https://supreme.justia.com/cases/federal/us/509/579/?utm_source ↩︎
- Daubert Standard” – LII / Legal Information Institute (comentário jurídico) https://www.law.cornell.edu/wex/daubert_standard?utm_source ↩︎
- “A scientist’s take on scientific evidence in the courtroom” (em PMC / NCBI) https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10576137/?utm_source ↩︎
- pseudociência e prova pericial https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-importancia-de-diferenciar-pseudociencia-de-ciencia-no-exercicio-da-advocacia/903746311?utm_source ↩︎
- Doutrina nacional — “Segunda Parte – Prova Pericial e Seu Controle no Direito Processual Brasileiro https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/segunda-parte-prova-pericial-e-seu-controle-no-direito-processual-brasileiro/1279976337?utm_source ↩︎
- art. 464 do CPC https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28892245/artigo-464-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
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