Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
O reconhecimento de pessoas é um dos temas mais sensíveis dentro da persecução penal, especialmente quando realizado com base em fotografias. No julgamento do Habeas Corpus nº 255.366/PR, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou essa questão ao decidir pela absolvição de um réu condenado com base exclusivamente em reconhecimentos fotográficos frágeis e tecnicamente questionáveis.
O caso ganha destaque ao evidenciar as limitações dos reconhecimentos visuais e a necessidade de observância rigorosa do procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal (CPP), sob pena de se perpetuar injustiças.
O paciente, Benjamim Ferreira da Silva Martins, foi condenado em primeiro grau pela prática de crimes cuja autoria lhe foi atribuída com base em reconhecimentos fotográficos realizados durante a fase policial. As vítimas indicaram o réu principalmente por traços visíveis como olhos e sobrancelha, já que ele usava máscara no momento do crime, o que impedia a visualização plena do rosto.
No entanto, outras características apontadas pelas vítimas — como voz e modo de agir (“jeito”) — não são perceptíveis por meio de fotografias, o que já fragilizava os elementos de convicção. Ademais, uma das vítimas mencionou a presença de uma tatuagem no antebraço do autor do crime, informação impossível de confirmar a partir das imagens, que focavam apenas o rosto.
A Importância do Procedimento do Art. 226 do CPP
O relator do caso, Ministro Gilmar Mendes, destacou com firmeza que, embora historicamente relativizado, o art. 226 do CPP não pode ser ignorado. Esse dispositivo prevê um rito mínimo para que o reconhecimento seja considerado válido, exigindo, por exemplo:
- Prévia descrição da pessoa a ser reconhecida;
- Apresentação de pessoas com características semelhantes;
- Realização do reconhecimento com cautela e sem induzimento.
Ao descumprir essas etapas, corre-se o risco de produzir provas contaminadas pela subjetividade e pelo viés da memória — o que a ciência já demonstrou ser especialmente perigoso em situações de estresse ou quando há limitações visuais, como o uso de máscaras.
Decisão do STF e Fundamentação Jurídica
Diante das fragilidades da prova e da ausência de outros elementos corroborativos, a Segunda Turma do STF, por decisão unânime, concedeu a ordem de ofício para absolver o réu. A decisão se baseou no art. 386, VII, do CPP, que determina a absolvição quando “não existirem provas suficientes para a condenação”.
Apesar de não conhecer formalmente o recurso (com base no art. 21, § 1º, do RISTF), a Corte reconheceu que manter a condenação seria incompatível com as garantias fundamentais do devido processo legal e da presunção de inocência.

Relevância do Caso para a Atuação Técnica e Pericial
Esse julgamento reforça a importância de uma atuação técnico-pericial criteriosa e fundamentada. O uso de reconhecimento fotográfico como prova única deve ser visto com extrema cautela. Peritos e assistentes técnicos precisam estar atentos a:
- Condições da coleta da prova (ambiente, qualidade das imagens, parcialidade na seleção de fotografias);
- Ausência de elementos objetivos que sustentem a identificação;
- Contradições entre a descrição da vítima e a aparência do suspeito nas imagens;
- A falta de validação pericial complementar (como comparação facial técnica, uso de software de biometria ou videoperícia).
O HC 255.366/PR representa mais que a absolvição de um inocente — ele é um alerta ao sistema penal: o reconhecimento visual, quando desacompanhado de outras provas robustas, não pode sustentar uma condenação criminal. O julgamento reafirma o compromisso do STF com a ciência forense, a legalidade processual e os direitos fundamentais.
Cabe aos profissionais do Direito e da perícia técnica atuarem com rigor, ética e compromisso com a verdade, garantindo que a justiça não se torne refém de procedimentos viciados ou de práticas investigativas frágeis.
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