Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Comprovação de União Estável por Meio de Provas Digitais:
Uma Análise Jurídico-Probatória à Luz da Tecnologia
A comprovação de união estável tem sido objeto de crescente atenção no âmbito jurídico brasileiro, sobretudo diante das novas formas de produção e armazenamento de informações na era digital. Este artigo explora o papel das provas digitais na formação do convencimento judicial sobre a existência de uma união estável, abordando os tipos de provas mais comuns, critérios de admissibilidade, desafios relacionados à autenticidade e integridade, além de exemplos práticos de utilização. O estudo pretende contribuir para o entendimento técnico e jurídico sobre o tema, oferecendo suporte tanto para operadores do Direito quanto para peritos e assistentes técnicos envolvidos na produção de provas digitais.
A evolução das tecnologias de comunicação e o crescente uso de redes sociais, aplicativos de mensagens e registros digitais alteraram significativamente a forma como as pessoas se relacionam e, por consequência, como deixam rastros de suas relações. No campo do Direito de Família, a união estável, enquanto entidade familiar reconhecida pela Constituição Federal de 19881 e pelo Código Civil2, passou a ser frequentemente comprovada por meio de documentos e registros digitais.
A dificuldade de obtenção de provas materiais tradicionais, como contratos ou declarações formais, faz com que as partes recorram cada vez mais a e-mails, mensagens de WhatsApp, fotos em redes sociais, registros de geolocalização e outras fontes digitais para comprovar a convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituição de família.
Fundamentos Jurídicos da União Estável e a Prova no Processo Civil
De acordo com o artigo 1.723 do Código Civil3, a união estável se caracteriza pela convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas com o objetivo de constituição de família. Não há exigência de formalização prévia, o que abre espaço para uma ampla gama de meios probatórios, conforme preconiza o artigo 369 do Código de Processo Civil4: “As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa”.
Tipos de Provas Digitais Aplicáveis
As provas digitais relevantes para a comprovação de união estável podem ser classificadas em diversas categorias:
- Mensagens de Aplicativos de Comunicação (WhatsApp, Telegram, etc.): Mensagens trocadas entre as partes ou entre os parceiros e terceiros demonstrando a relação afetiva, planos futuros, celebrações de datas importantes, entre outros.
- Postagens em Redes Sociais: Publicações conjuntas, marcações de localização, fotos, comentários públicos de terceiros reconhecendo a união, são elementos que indicam a publicidade da relação.
- E-mails e Correspondências Eletrônicas: Trocas de e-mails que contenham conversas relevantes sobre a convivência, a vida em comum ou planejamento de vida. Históricos de localização compartilhada, check-ins em redes sociais ou serviços de localização de smartphones podem ajudar a comprovar coabitação ou convivência frequente. Declarações de Imposto de Renda com inclusão de companheiro como dependente, contratos digitais de serviços ou financiamentos conjuntos.
Requisitos de Admissibilidade e Valoração da Prova Digital
- Autenticidade: O perito judicial pode ser chamado a verificar a integridade e a autenticidade dos arquivos digitais apresentados, analisando metadados, logs e eventuais manipulações.
- Cadeia de Custódia: É fundamental garantir a preservação da cadeia de custódia da prova digital, desde a coleta até a sua apresentação em juízo, para evitar alegações de fraude ou adulteração. A prova digital isolada pode gerar interpretações equivocadas. Por isso, o conjunto probatório deve ser analisado de forma integrada com testemunhos, documentos físicos e outros elementos do processo.
A aceitação de provas digitais pelos tribunais brasileiros tem se tornado cada vez mais frequente, acompanhando a evolução das formas de comunicação e armazenamento de dados. Juízes têm reconhecido como elementos válidos para a comprovação de união estável diversas manifestações digitais, tais como:
- Conversas em aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, incluindo diálogos entre as partes e interações com terceiros que reconhecem a existência da relação afetiva;
- Postagens em redes sociais, com legendas, comentários e interações públicas que evidenciem a publicidade e a estabilidade da convivência;
- Fotografias em eventos familiares e sociais, acompanhadas de legendas ou testemunhos que reforcem o vínculo afetivo entre o casal;
- Comprovantes digitais de viagens realizadas em conjunto, como passagens aéreas, reservas de hospedagem e check-ins geolocalizados;
- Mensagens e documentos eletrônicos que demonstrem planejamento de aquisição de bens comuns, como imóveis ou veículos, em nome de ambos.
⚠️No entanto, a utilização de provas digitais no contexto processual ainda impõe uma série de desafios técnicos e jurídicos que não podem ser ignorados:
- A suscetibilidade das provas digitais a manipulações, adulterações ou falsificações, especialmente diante do avanço de tecnologias como deepfakes e edições avançadas de conteúdo;
- A necessidade de perícia técnica especializada, fundamental para garantir a autenticidade, integridade e veracidade dos arquivos digitais apresentados. O perito atua na análise forense dos documentos eletrônicos, utilizando métodos reconhecidos, como a verificação de metadados, hash codes, análise de logs e comparação com fontes originais, quando disponíveis;
- A proteção da privacidade e da intimidade das partes envolvidas, uma vez que a produção de prova digital frequentemente envolve conteúdos sensíveis, exigindo um tratamento técnico cuidadoso, ético e em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados);
- A relativização do princípio da oralidade, com o crescente protagonismo da documentalidade digital como elemento central na formação da convicção judicial.
Diante desse cenário, a atuação pericial torna-se imprescindível para que o Judiciário possa decidir com segurança e respaldo técnico. A perícia técnica especializada não apenas atesta a confiabilidade das provas digitais, como também contribui para evitar injustiças, proteger direitos fundamentais e assegurar o equilíbrio entre o direito à prova e a preservação da intimidade das partes. A prova digital, quando bem coletada, autenticada e contextualizada, tem se mostrado uma ferramenta valiosa para a comprovação da união estável no Direito de Família brasileiro. Cabe aos advogados, assistentes técnicos e peritos forenses dominar os aspectos técnicos e legais dessas provas, garantindo sua efetividade e segurança jurídica. O desafio futuro é estabelecer procedimentos mais padronizados para a produção e análise de provas digitais no âmbito das Varas de Família, alinhando tecnologia e Direito de forma ética e eficiente.
Referências Bibliográficas
- Constituição Federal de 1988 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm ↩︎
- Código Civil https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm ↩︎
- Parágrafo 1º, art. 1723 https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10613774/paragrafo-1-art-1723-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 ↩︎
- Artigo 369 do Código de Processo Civil https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28893070/artigo-369-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
- BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406/2002 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm ↩︎
- BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105/2015 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm ↩︎
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