Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Um dos pilares da arbitragem é a confiança: nas partes, no procedimento e, sobretudo, na imparcialidade dos árbitros. Recentemente, essa confiança tem sido posta à prova com a possibilidade de revisão de um importante precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), utilizado por empresas para sustentar a validade de sentenças arbitrais questionadas por suposta violação do chamado “dever de revelação”.
A discussão reacende o debate sobre até que ponto uma falha formal na declaração de vínculos de um árbitro pode — ou deve — comprometer todo o procedimento arbitral. E mais do que isso: até que ponto o Judiciário pode intervir sem ferir a autonomia da arbitragem, um instrumento consagrado pela Lei nº 9.307/19961.
O precedente em disputa
Em junho de 2023, a 3ª Turma do STJ2 julgou um recurso que se tornaria um marco. Por maioria (3 a 2), os ministros negaram a anulação de uma sentença arbitral, entendendo que uma eventual falha no dever de revelação não implica, automaticamente, a revisão da decisão arbitral.
O caso envolveu a Brandão & Valgas Serviços Médicos, condenada a pagar R$ 4,3 milhões à Esho Empresa de Serviços Hospitalares. A empresa alegou que um dos árbitros omitiu informações relevantes — como o fato de que o escritório de advocacia ao qual está vinculado prestava serviços à Kora Saúde Participações, ligada comercialmente à parte vencedora.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, reconheceu a falha, mas ponderou que a omissão não foi suficiente para comprovar falta de imparcialidade ou independência. Segundo seu voto, não havia elementos que justificassem a anulação da sentença arbitral.
Em meio à controvérsia, o advogado Dr. Gabriel Britto da Silva, integrante da Comissão de Arbitragem da OAB-RJ, trouxe uma distinção essencial para compreender o debate:
“A falha no dever de revelação é uma coisa e a questão da imparcialidade é outra. É a falta de imparcialidade, como destacou a ministra Nancy, que poderia comprometer a arbitragem”, afirma.
Essa observação sintetiza o ponto de equilíbrio que o sistema arbitral busca preservar: a diferença entre um erro formal e uma conduta que efetivamente compromete a justiça da decisão.
O dever de revelação, previsto no artigo 14 da Lei da Arbitragem, exige transparência prévia do árbitro quanto a qualquer fato que possa gerar dúvida sobre sua imparcialidade. No entanto, como pondera o Dr. Gabriel, a mera omissão não basta. É preciso demonstrar que tal omissão afetou concretamente a independência e a isenção do julgamento.
Essa interpretação evita que o instituto da arbitragem seja fragilizado por contestações meramente estratégicas, utilizadas por partes insatisfeitas com o resultado final. Ao mesmo tempo, reforça o compromisso ético e técnico dos árbitros com a clareza e a boa-fé.
Impactos práticos e movimentos das câmaras arbitrais
A decisão da 3ª Turma teve repercussão imediata. Conforme levantamento conduzido por Dr. Gabriel Britto, via JusBrasil, o número de processos judiciais sobre o “dever de revelação” diminuiu expressivamente após a publicação do acórdão — de nove casos antes da decisão, para apenas dois no período subsequente.
Esse dado revela um efeito positivo de estabilização jurisprudencial e reforça a importância da previsibilidade nas relações empresariais. Paralelamente, diversas câmaras arbitrais passaram a atualizar seus questionários de revelação, ampliando as perguntas feitas aos árbitros antes de aceitarem o encargo. A intenção é clara: prevenir riscos e preservar a credibilidade do procedimento.
o desafio do STJ
O novo recurso apresentado pela empresa busca mudar o entendimento da 3ª Turma, alegando divergência com decisões anteriores do próprio STJ — inclusive da Corte Especial, que em 2017 negou a homologação de sentença arbitral com base em vínculos considerados comprometedores (SEC 9.412/EX).
Para alguns especialistas, se o STJ reverter o precedente, o impacto poderá ser significativo. Além de aumentar o risco de anulações, traria insegurança jurídica a um ambiente construído justamente sobre a previsibilidade e a autonomia das partes.
Em contrapartida, advogados como Lucas Akel e Jailton Zanon, que representam a empresa, defendem que a simples existência de um fato não revelado — capaz de gerar dúvida justificada — já bastaria para a anulação da sentença. Trata-se de uma leitura mais objetiva e formal do dever de revelação.
O debate sobre o dever de revelação e a imparcialidade arbitral vai muito além de uma disputa processual isolada. Ele toca a essência da confiança no sistema de resolução privada de conflitos.
A fala do Dr. Gabriel Britto da Silva destaca, com precisão técnica, que o que realmente compromete a arbitragem não é a falha de forma, mas a falta de substância ética e imparcialidade efetiva. Em outras palavras: transparência é um meio, não um fim em si mesma.
Ao distinguir o dever de revelação da imparcialidade, o Dr. Gabriel reforça a maturidade do sistema arbitral brasileiro — que deve continuar a evoluir, sem abrir mão nem da ética, nem da estabilidade.
- Lei nº 9.307/1996 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm ↩︎
- Fonte: https://goo.su/WFAzrfS ↩︎
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