Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Direito de Precedência, Nulidade de Registro de Marca e a Força da Cadeia de Custódia
No âmbito da Propriedade Industrial, o registro de marca é um instrumento essencial de proteção e exclusividade de uso. Entretanto, esse sistema não é absoluto: há situações em que alguém que já usava uma marca (ou sinal distintivo) tem direito a uma precedência sobre outro que fez o registro primeiro, desde que preenchidos certos requisitos legais. Se esse direito não for reconhecido, pode haver nulidade do registro concedido. Além disso, quando provas de uso anterior ou uso de marca são apresentadas (em processo administrativo ou judicial), a integridade dessas provas — preservação, coleta, documentação — é essencial. A cadeia de custódia, embora mais discutida em provas criminais ou digitais, ganha relevância em disputas marcárias que envolvem documentos, amostras, ou meios digitais.
Direito de Precedência
O direito de precedência (às vezes chamado “direito do usuário anterior de boa-fé”) está previsto no §1º do artigo 129 da Lei de Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279/19961). Ele garante que:
“Toda pessoa que, de boa-fé, na data da prioridade ou depósito, usava no País, há pelo menos seis meses, marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, terá direito de precedência ao registro.”
Ou seja, os requisitos básicos são:
- Uso anterior da marca ou sinal idêntico ou semelhante no mercado brasileiro, por pelo menos 6 meses antes do depósito (ou data de prioridade);
- Boa-fé desse uso (uso lícito, contínuo, visível ou de forma que possa ser comprovado);
- O sinal deve distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim ao do pedido de marca;
- Comprovação documental ou por provas idôneas que demonstrem esse uso.
Importância do reconhecimento do direito de precedência
Esse instituto funciona como exceção ao princípio atributivo do sistema marcário2 brasileiro, segundo o qual a marca “só se transforma em direito” com o registro validamente expedido pelo INPI. O direito de precedência permite que alguém que já usava a marca impeça ou anule registro feito posteriormente por terceiro, caso esse registro conflite com esse uso anterior.
Evolução e Nulidade de Registro: Quando o Direito de Precedência é Reconhecido
Antes de 2021, o INPI adotava entendimento de que o direito de precedência só poderia ser arguido (ou seja, invocado) durante a fase administrativa de registro, mais precisamente até a concessão do registro, ou no prazo de oposição contra o pedido de registro de terceiro. O Manual de Marcas do INPI inclinava-se a esse entendimento.
Mudança recente – Parecer Normativo do INPI (nº 00043/2021 / CGPI / PFE-INPI / PGF / AGU3). Em 3 de novembro de 2021, o INPI publicou o Parecer nº 00043/2021, com efeito normativo, no RPI (Revista de Propriedade Industrial) nº 2652, reconhecendo que o direito de precedência pode ser alegado também no Processo Administrativo de Nulidade (PAN), ou seja, após concessão do registro, para anular aquele registro que conflita com uso anterior de boa-fé.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ4) já havia consolidado entendimento de que é possível, sim, reconhecimento judicial do direito de precedência em ação de nulidade, mesmo após o registro concedido — a depender do cumprimento dos requisitos legais.
Nulidade de registro de marca
Se o usuário anterior puder provar uso legítimo e contínuo da marca, em boa-fé, com os requisitos acima, ele pode requerer, administrativa ou judicialmente, a nulidade do registro concedido a terceiro. A nulidade pode ser administrativa (no âmbito do INPI) ou judicial (via ação de nulidade5). Também há análise de aspectos como coibir a confusão para o consumidor ou imitação/reprodução de marca alheia, previstos nos artigos da LPI que tratam da registrabilidade.
Cadeia de Custódia: Força, Importância e Relação com Provas do Uso de Marca
Embora a cadeia de custódia seja um instituto mais comumente debatido em provas criminais ou digitais, ela tem aplicabilidade relevante em disputas marcárias sempre que se fizer necessário provar uso passado ou documentos que constatem esse uso.
O que é cadeia de custódia
- Define-se como o conjunto de procedimentos para preservar, rastrear, documentar quem, quando, como e onde manuseou determinada prova ou evidência, desde sua coleta, obtenção, armazenamento, exame, até apresentação em juízo.
- Nos meios digitais, isso envolve também assegurar integridade do dado (hashes, registros de logs, metadados), garantir que não houve adulteração, e que todas as etapas estejam documentadas.
Legislação brasileira relevante
- A Lei nº 13.964/2019 (pacote anticrime) inseriu no Código de Processo Penal o artigo 158-A, que define a cadeia de custódia como “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado …”
- Normas técnicas como a ABNT ISO/IEC 27037 tratam de procedimentos de preservação de evidências digitais.
Importância para disputas marcárias / nulidades
Para quem invoca o direito de precedência, é comum apresentar provas de uso anterior — notas fiscais, fotografias, etiquetas, embalagens, publicidade, registros de domínio ou redes sociais, etc. Quando algumas dessas provas envolvem meios digitais ou documentos físicos com manipulação possível, a cadeia de custódia serve para assegurar:
- que o documento ou evidência é autêntico (não falsificado ou adulterado);
- que sua integridade está preservada (não alterado, corrompido ou manipulado indevidamente);
- que a origem, data e histórico de manuseio são claros;
- que o valor probatório não será fragilizado por dúvidas sobre sua confiabilidade.
Se a cadeia de custódia for fragilizada ou quebrada — por exemplo, ausência de documentação de quem manuseou determinada prova, ausência de provas de quando o uso começou, dados digitais sem metadados ou hash, etc. —, isso pode comprometer ou até anular a prova apresentada. Em processos judiciais, pode levar o juiz a rejeitar a prova ou atribuir-lhe peso reduzido. Em alguns casos extremos, se houver evidência de ilegalidade (como falsificação) ou manipulação grave, a prova pode ser considerada inválida.
Intersecção entre Direito de Precedência, Nulidade e Cadeia de Custódia
Integrar essas três dimensões revela quais são os desafios práticos e questões estratégicas num litígio marcário:
| Etapa | O que precisa ser observado | Riscos se for fraco ou omitido |
|---|---|---|
| Coleta de provas do uso (notas fiscais, fotos, anúncios, embalagens, arquivos digitais etc.) | Preservar os originais ou cópias fidedignas; conservar datalização; assegurar que arquivos digitais não foram adulterados; guardar metadados; quem produziu, quando, como, armazenagem segura. | Alegações de falsificação; contestação de autenticidade; falhas na cronologia de uso que podem descartar o direito de precedência; prova com menor valor |
| Documentação do uso anterior | Ter datas precisas, testemunhas, contratos, registros, datas de fabricação, distribuição, publicidade; conservação dos registros; integridade digital. | Se faltar esse tipo de prova, o direito de precedência pode não ser reconhecido; a nulidade do registro pode ser negada pelo julgador ou pelo INPI |
| Momento de arguição | Com o novo entendimento do INPI e jurisprudência, é possível arguir o direito mesmo em processo de nulidade administrativa ou judicial, após registro. Mas precisa-se cuidar do prazo prescricional (art. 174 da LPI), entre outros. (IDS) | Se perder esse prazo, ou deixar de agir em tempo, pode haver a preclusão ou a impossibilidade de invocar esse direito; a nulidade pode não ser decretada |
- Desde cedo, guardar provas de uso: notas fiscais, contratos de fornecimento, publicidade, fotos, embalagens, registros de domínio, etc.; fazer cópias autenticadas e conservar originais.
- Nos documentos digitais: usar técnicas forenses sempre que possível; gerar hashes; conservar metadados; registrar logs de acesso/manipulação.
- Documentar toda a cadeia de custódia: quem teve acesso, quando, por quê, como armazenado, segurança do local, condições de transito da prova.
- Consultar especialista em Propriedade Industrial / Perícia técnica desde o início se houver risco de conflito.
- Acompanhar prazos legais (registrados, de nulidade, prescrição) e agir de forma preventiva.
O direito de precedência é um mecanismo relevante para proteger quem investe no uso de uma marca mesmo sem registro formal, permitindo corrigir injustiças quando terceiros registram sinais conflitantes. A nulidade do registro de terceiro pode ser declarada administrativa ou judicialmente quando houver prova suficiente de uso anterior de boa-fé. Porém, para que essa prova seja aceita, sua integridade e confiabilidade são essenciais — aí entra a importância da cadeia de custódia. Uma prova forte, bem documentada, reduz riscos, aumenta a segurança jurídica e torna possível que o direito de precedência seja efetivamente reconhecido.
- §1º do artigo 129 da Lei de Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279/1996 https://riccipi.com.br/direito-precedencia/?utm_source=chatgpt.com ↩︎
- sistema marcário https://blog.peduti.com.br/processo-administrativo-de-nulidade/?utm_source=chatgpt.com ↩︎
- INPI (nº 00043/2021 / CGPI / PFE-INPI / PGF / AGU) https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/legislacao/arquivos/documentos/parecer-n-00043-2021-cgpi-pfe-inpi-pgf-agu-com-carater-normativo.pdf/view ↩︎
- Superior Tribunal de Justiça (STJ) https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-01-30_09-03_Direito-de-precedencia-justifica-anulacao-de-marca-registrada-pelo-INPI.aspx?utm_source=chatgpt.com ↩︎
- A nulidade pode ser administrativa (no âmbito do INPI) ou judicial (via ação de nulidade) https://www.mattosfilho.com.br/unico/direito-precedencia-nulidade/?utm_source=chatgpt.com ↩︎
Vimos que você gostou e quer compartilhar. Sem problemas, desde que cite o link da página. Lei de Direitos Autorais, (Lei 9610 de 19/02/1998), sua reprodução total ou parcial é proibida nos termos da Lei
