STJ exclui provas digitais da Apple após reconhecer quebra da cadeia de custódia

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão de grande relevância para o direito probatório ao dar provimento ao Recurso em Habeas Corpus nº 216.998/R, reconhecendo a quebra da cadeia de custódia e determinando a exclusão de provas digitais fornecidas pela Apple. O entendimento consolida um marco na jurisprudência brasileira ao reafirmar que, no processo penal, a prova digital somente é válida quando acompanhada de rigor técnico, rastreabilidade e observância estrita dos procedimentos legais.

A cadeia de custódia como requisito de validade da prova digital

A cadeia de custódia, prevista nos arts. 158-A a 158-F do Código de Processo Penal, constitui um dos pilares da confiabilidade probatória. Trata-se do conjunto de procedimentos que assegura a identidade, integridade e autenticidade da prova, desde a sua obtenção até o seu descarte ou arquivamento.

No campo digital, essa exigência ganha relevo especial. Dados eletrônicos são intangíveis, facilmente copiáveis e suscetíveis a alterações sem vestígios aparentes. Por isso, a ausência de documentação técnica adequada como registros de coleta, preservação, cálculo de hash, armazenamento e acesso compromete diretamente a validade da prova.

O provimento ao RHC nº 216.998/R e o afastamento da presunção de confiabilidade

No julgamento do RHC nº 216.998/R, o STJ afastou qualquer presunção automática de confiabilidade das provas digitais pelo simples fato de terem sido fornecidas por uma grande empresa de tecnologia. O Tribunal reconheceu que a origem institucional do dado não supre a necessidade de observância da cadeia de custódia, tampouco dispensa a demonstração técnica de sua integridade.

Ficou evidenciado que a ausência de informações claras e verificáveis sobre:

  • o procedimento de extração dos dados,
  • os critérios técnicos adotados,
  • a preservação da integridade dos arquivos,
  • e a rastreabilidade do material probatório,

configura quebra da cadeia de custódia, tornando a prova imprestável para fins processuais.

Quebra da cadeia de custódia e exclusão da prova

Ao dar provimento ao recurso, o STJ reafirmou que a quebra da cadeia de custódia não se trata de mero vício formal, mas de violação substancial às garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Sem a cadeia de custódia íntegra, a defesa fica impossibilitada de exercer controle técnico sobre a prova, questionar sua autenticidade ou identificar eventuais falhas metodológicas. Nessas condições, a prova digital perde sua confiabilidade e não pode servir de base para imputações penais ou condenações.

Repercussões práticas do precedente

O provimento ao RHC nº 216.998/R projeta efeitos relevantes para investigações criminais e processos judiciais que envolvam provas digitais. A decisão sinaliza que:

  • provas digitais exigem procedimentos técnicos documentados e auditáveis;
  • relatórios genéricos ou meramente descritivos são insuficientes;
  • a ausência de hash, logs, laudos periciais detalhados e registros de manuseio fragiliza a prova;
  • a atuação pericial deve observar normas técnicas e boas práticas forenses;
  • empresas de tecnologia não substituem o controle técnico-jurídico exigido pelo processo penal.

Para a advocacia criminal e para a perícia judicial, o precedente fortalece a impugnação técnica de provas digitais, especialmente em casos que envolvam dados extraídos de dispositivos eletrônicos, nuvem, aplicativos de mensagens e plataformas tecnológicas.

A decisão do STJ no RHC nº 216.998/R é, sem dúvida, paradigmática. Ela reafirma que não há prova digital válida sem cadeia de custódia íntegra, independentemente da sofisticação tecnológica ou da reputação da empresa fornecedora dos dados.

Em um cenário de crescente digitalização das investigações, o julgamento reforça uma mensagem essencial: tecnologia sem método não produz prova, produz insegurança jurídica. O rigor técnico e o respeito às garantias processuais não são entraves à justiça, mas sua condição de legitimidade.


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