Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
Artigo baseando na A série coreana Além do Direito (법을 넘어서): Imagine um trem em alta velocidade com cem passageiros a bordo. À frente, uma pedra gigante obstrui a linha férrea. O condutor, Sr. Kim, tem apenas dois caminhos: manter a rota e condenar todos à morte ou desviar para uma linha lateral onde, isolado, está um técnico. Ao optar por salvar a maioria, aciona a alavanca. O trem muda de direção, os cem passageiros sobrevivem, mas o técnico é atropelado e morre. Nesse cenário, a pergunta inevitável surge: o Sr. Kim cometeu homicídio?
Este artigo busca analisar esse dilema à luz do Direito Penal brasileiro, explorando os elementos do crime, a tipicidade formal e material, e as excludentes de ilicitude, especialmente o estado de necessidade.
O Ato de Matar: Tipicidade Penal
De acordo com o artigo 1211 do Código Penal Brasileiro, o homicídio consiste em “matar alguém”. A conduta do Sr. Kim preenche os elementos objetivos do tipo: ele realiza uma ação (puxar a alavanca) que resulta na morte de uma pessoa (o técnico). Também há o elemento subjetivo: ele tinha consciência de que sua ação causaria a morte do indivíduo. Em termos formais, o crime de homicídio está configurado. Contudo, o Direito Penal moderno não se satisfaz apenas com a análise formal. É necessário considerar a tipicidade material, ou seja, se a conduta merece mesmo a reprovação penal frente ao ordenamento jurídico, dadas as circunstâncias.
Estado de Necessidade: Fundamento da Exclusão de Ilicitude
O artigo 242 do Código Penal trata do estado de necessidade, uma excludente de ilicitude aplicável quando alguém pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício não era razoável exigir:
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”
No caso narrado, o Sr. Kim agiu para evitar a morte de cem pessoas — um número significativamente superior à vida que foi sacrificada. A morte do técnico, embora trágica, ocorreu como resultado de uma decisão forçada por um perigo iminente. A doutrina penal majoritária considera que, quando o bem jurídico salvo é muito mais valioso (número de vidas), o sacrifício do bem jurídico de menor valor pode ser justificado.
O Papel da Culpabilidade e da Proporcionalidade
Mesmo que se reconheça a tipicidade do ato, o Sr. Kim não deve ser punido se a conduta for amparada por uma causa de exclusão da ilicitude. A culpabilidade, que exige potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade, também entra em jogo. No contexto apresentado, dificilmente se poderia exigir que o Sr. Kim escolhesse não puxar a alavanca e aceitasse a morte de cem pessoas. A exigibilidade de conduta diversa desaparece diante da situação-limite. Portanto, mesmo que tecnicamente se reconheça o “homicídio” em sentido formal, a ilicitude é excluída, e a pena, afastada.
A Tensão entre Moral e Direito
O dilema retratado ilustra bem a cisão entre o juízo moral e o jurídico. A moral pode julgar que tirar uma vida para salvar outras é eticamente aceitável ou mesmo louvável. Já o Direito, com seu compromisso com a legalidade estrita, exige que se verifiquem os critérios normativos para afastar a punição — não basta que a decisão pareça “certa”, ela precisa estar juridicamente justificada. Como ensina a doutrina penal, o Direito não pune sentimentos nem escolhas morais, mas condutas penalmente relevantes. Assim, um ato pode ser moralmente justo e juridicamente ilícito — ou o oposto.
A conduta do Sr. Kim preenche os requisitos formais do homicídio, mas encontra amparo jurídico na excludente do estado de necessidade. Em termos técnicos, houve a morte de uma pessoa causada por ação humana consciente. Mas, do ponto de vista jurídico, não há crime punível, pois a situação-limite justifica o ato. Esse caso nos obriga a refletir sobre o papel do Direito Penal diante de situações extremas. A lei é feita para o cotidiano, mas deve ter ferramentas para lidar com o extraordinário — ainda que imperfeita.
E você, leitor(a): em um cenário como esse, puxaria a alavanca? E acreditaria que a sua decisão mereceria uma punição?
- artigo 121 do Código Penal Brasileiro https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10625629/artigo-121-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940 ↩︎
- artigo 24 do Código Penal https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10637299/artigo-24-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940 ↩︎
Vimos que você gostou e quer compartilhar. Sem problemas, desde que cite o link da página. Lei de Direitos Autorais, (Lei 9610 de 19/02/1998), sua reprodução total ou parcial é proibida nos termos da Lei
