O Caso Wilton Bernardo x Carlinhos Brown

Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O recente julgamento envolvendo o artista plástico Wilton Bernardo e o músico Carlinhos Brown, proferido pela 10ª Vara Cível e Comercial de Salvador/BA, processo nº. 0538672-75.2018.8.05.0001, traz importantes reflexões sobre direitos autorais, coautoria e responsabilidade pelo uso indevido de obras intelectuais, especialmente no campo das artes visuais.

o caso

Em 2012, Wilton Bernardo foi convidado a ilustrar personagens indígenas para um livro infantil de Carlinhos Brown, os agora conhecidos Paxuá e Paramim. Conforme alegado, os personagens ainda não possuíam identidade visual definida, cabendo ao ilustrador o desenvolvimento completo de suas características gráficas.

O combinado à época previa uso restrito à exposição educativa vinculada ao projeto do músico, sem finalidade comercial. Pelo serviço, Wilton recebeu R$ 1 mil. Ocorre que, nos anos seguintes, os personagens passaram a ser amplamente explorados em produtos, campanhas institucionais e projetos comerciais, como um contrato com a Neoenergia S/A avaliado em R$ 1,3 milhão — tudo sem a autorização do ilustrador ou o reconhecimento de sua coautoria.

Diante disso, Wilton ajuizou ação judicial pleiteando o reconhecimento de coautoria, indenização por danos morais e materiais, além da cessação do uso indevido das obras.

da decisão

O juiz Paulo Henrique Barreto Albiani Alves acolheu a tese do autor, reconhecendo que sua contribuição ultrapassou a simples execução gráfica. Segundo a sentença, Wilton Bernardo foi o responsável por materializar visualmente os personagens, conferindo-lhes características únicas, o que configura ato criativo e original — ou seja, coautoria, nos termos da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

  • Originalidade da criação: A prova pericial foi categórica ao apontar que os personagens posteriormente explorados mantêm traços dominantes da identidade visual concebida por Wilton, o que comprova a vinculação direta entre a obra original e a versão comercializada.
  • Ausência de cessão de direitos: Não existia contrato formal autorizando a utilização comercial das ilustrações. Conforme o art. 50 da Lei 9.610/98, a cessão de direitos deve ser expressa e por escrito, o que não ocorreu.
  • Limitação do uso inicial: A autorização dada por Wilton se restringia ao uso na exposição de 2012. A extrapolação para fins lucrativos e campanhas publicitárias configura violação aos direitos autorais.
  • Responsabilidade solidária: Foram responsabilizados, além de Carlinhos Brown, as empresas Candyall Music Produções Artísticas LTDA, Pilar das Produções e Eventos LTDA e a própria Neoenergia S/A, por utilizarem as criações sem diligência quanto à titularidade dos direitos.

📌 Segundo o magistrado, a supressão da coautoria não se trata de erro administrativo, mas de um “apagamento simbólico que atinge a honra subjetiva e objetiva do autor no meio artístico e profissional”.

A sentença impôs aos réus as seguintes obrigações:

  • Reconhecimento público da coautoria, mediante publicação em jornal de grande circulação, por três vezes consecutivas.
  • Indenização por danos morais no valor de R$ 40 mil.
  • Apuração de danos materiais em fase de liquidação de sentença.
  • Proibição do uso futuro dos personagens sem autorização expressa e sem menção à coautoria.
  • Apresentação de contratos firmados envolvendo o uso dos personagens.
  • Multa diária de R$ 1 mil por descumprimento das determinações judiciais.

Além disso, foi rejeitado o pedido de reconvenção dos réus, que alegavam terem sofrido dano moral. A Justiça considerou que o autor agiu dentro da legalidade e amparado por provas técnicas e testemunhais consistentes.

Este caso serve como alerta e como referência jurisprudencial importante sobre a proteção de criações visuais. Os principais aprendizados incluem:

  • A coautoria existe quando há contribuição criativa, ainda que apenas em parte da obra (como o aspecto visual de personagens idealizados por outrem).
  • O pagamento por um trabalho artístico não equivale à cessão dos direitos autorais, salvo se houver contrato escrito específico.
  • A prova pericial tem papel crucial em disputas de autoria, especialmente quando há evolução da obra ou transformações ao longo do tempo.
  • A diligência na cadeia de uso da obra intelectual é obrigatória para empresas contratantes, como no caso da Neoenergia, que poderia (e deveria) ter verificado a origem da titularidade autoral.

A decisão reafirma o valor jurídico da criatividade individual no contexto de projetos colaborativos, especialmente em áreas onde o trabalho do ilustrador, designer ou artista visual é muitas vezes tratado como mera execução técnica. Trata-se de uma afirmação do direito moral do autor à paternidade da obra, bem como dos direitos patrimoniais decorrentes de sua exploração comercial.

Para profissionais e empresas, fica a lição: respeitar os direitos autorais não é apenas uma exigência legal, mas também uma prática de ética, justiça e reconhecimento profissional.