Citação extraviada: o preço da negligência condominial na comunicação judicial

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

Nulidade de Citação em Condomínio: TJSP Reconhece Invalidade Após Extravio de Carta Recebida por Porteiro

A recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que reconheceu a nulidade de citação em condomínio residencial, em razão do extravio da correspondência recebida por porteiro, reacende o debate sobre os limites e a validade dos atos de comunicação processual no contexto condominial.

No caso apreciado, a citação — ato essencial para a formação da relação processual — foi encaminhada via postal ao endereço do réu, sendo recebida por um porteiro do condomínio. Ocorre que a correspondência nunca foi entregue ao destinatário, que somente tomou conhecimento da ação após a prática de atos processuais já consolidados, o que lhe causou evidente prejuízo.

Diante desse contexto, o TJSP reconheceu a nulidade da citação, entendendo que não houve ciência válida e efetiva do demandado sobre o processo.

A citação como ato essencial e seus requisitos

Nos termos do artigo 238 do Código de Processo Civil (CPC1), a citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou interessado, para se defender. É, portanto, o marco inicial da relação processual e condição de validade do processo.

O artigo 239, §1º2, do CPC é categórico ao dispor que “o comparecimento espontâneo do réu supre a falta ou a nulidade da citação”, o que reforça sua natureza indispensável.
No caso analisado, não houve comparecimento voluntário, e o vício na citação impediu o exercício do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF).

Recebimento por porteiro: previsão legal e limites

O artigo 248, §4º3, do CPC, introduzido pela reforma de 2015, prevê a possibilidade de entrega de correspondência citatória ao porteiro do prédio onde reside o destinatário, desde que este se responsabilize pelo recebimento. Contudo, a jurisprudência tem entendido que essa regra não é absoluta. Para que a citação seja válida, é necessário que:

  • o porteiro realmente entregue a correspondência ao morador;
  • não haja dúvida quanto à ciência do destinatário; e
  • não haja prova de que a carta foi extraviada ou retida indevidamente.

No caso concreto, a falha na entrega da correspondência — comprovada pelo extravio — rompeu o nexo de comunicação entre o juízo e o réu, tornando o ato ineficaz e nulo. Diversos tribunais têm adotado entendimento semelhante ao do TJSP. O STJ, por exemplo, já decidiu:

“A citação postal recebida por pessoa que não é o destinatário, ainda que porteiro de edifício, é nula se comprovado que o réu não teve ciência da demanda.”

O fundamento central é o princípio da efetividade da citação, que não pode se transformar em mera formalidade burocrática. O ato deve atingir sua finalidade — dar ciência inequívoca ao demandado.

O reconhecimento da nulidade de citação tem efeitos profundos no processo. Todos os atos subsequentes — como revelia, sentença e eventual cumprimento de sentença — são anulados, restabelecendo-se o contraditório.

Além disso, a decisão reforça a necessidade de prudência nas citações em condomínios, especialmente quando realizadas via postal. Recomenda-se que advogados e servidores judiciais adotem medidas adicionais, como:

  • solicitação de confirmação de recebimento assinada pelo destinatário;
  • registro de protocolo interno do condomínio;
  • e, em casos sensíveis, a preferência por oficial de justiça, para garantir a pessoalidade do ato.

O reconhecimento da nulidade de citação pelo TJSP reafirma o compromisso do Judiciário com a garantia do contraditório e da ampla defesa, pilares do devido processo legal. Embora o CPC permita o recebimento da carta citatória pelo porteiro, tal ato não exime a necessidade de efetiva comunicação ao destinatário. A finalidade do processo não é surpreender o réu, mas assegurar que ele possa exercer seu direito de defesa de forma plena e informada.

Natureza da responsabilidade do condomínio

O condomínio, enquanto pessoa jurídica representada pelo síndico (art. 1.348, II, do Código Civil4), tem dever de zelar pelos bens e interesses comuns, o que inclui a organização e segurança da correspondência recebida nas áreas comuns — especialmente quando há portaria.

Quando um funcionário ou preposto (como o porteiro) recebe correspondências em nome de condôminos, ele age em nome e por conta do condomínio, que assume responsabilidade civil pelos atos de seus prepostos, conforme o art. 9325, III, do Código Civil:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
(…)
III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.

Assim, se o porteiro recebe a carta citatória (ato judicial) e a extravia, o condomínio pode responder pelos danos causados, seja de ordem material (custas, honorários, prejuízos processuais), seja moral, caso o condômino comprove que foi prejudicado em razão direta desse extravio.

Dever de diligência e controle de correspondências

Os tribunais vêm entendendo que a portaria do condomínio não é mera “caixa postal”, mas sim uma extensão da esfera de responsabilidade do condomínio quanto à integridade de documentos e notificações recebidas.

Em casos como esse, o condomínio deveria possuir protocolo interno de recebimento e entrega de correspondências, com assinatura e data, garantindo a rastreabilidade do documento — algo análogo à cadeia de custódia documental no campo pericial. A ausência desse controle configura negligência administrativa, podendo fundamentar a responsabilização civil.

Há precedentes reconhecendo a responsabilidade do condomínio nesses casos. Veja um exemplo:

“Condomínio – Responsabilidade civil – Extravio de correspondência judicial recebida pelo porteiro – Falha na prestação de serviço – Dever de indenizar configurado.”

A importância do controle interno:

“O condomínio responde civilmente pelos danos ocasionados ao condômino em razão de extravio ou entrega indevida de correspondência recebida por seu preposto.”

Perspectiva técnico-pericial: falha de protocolo

Do ponto de vista pericial e de compliance, o evento representa uma falha de procedimento interno. Em uma eventual perícia administrativa ou judicial, poderiam ser analisados:

  • Livros ou planilhas de controle de correspondência;
  • Treinamento e instruções dadas aos porteiros;
  • Regulamento interno e normas do condomínio sobre gestão de documentos;
  • Cadeia de custódia ;
  • E eventual omissão do síndico quanto à supervisão desses controles.

A ausência de tais mecanismos configura culpa in vigilando (falta de vigilância) e culpa in eligendo (escolha inadequada ou falta de treinamento do funcionário).

📚 Referências legais:

  1. artigo 238 do Código de Processo Civil (CPC) https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28894607/artigo-238-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
  2. artigo 239, §1º, do CPC https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28894603/paragrafo-1-artigo-239-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
  3. artigo 248, §4º, do CPC https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28894473/paragrafo-4-artigo-248-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015 ↩︎
  4. art. 1.348, II, do Código Civil https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10644341/artigo-1348-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 ↩︎
  5. art. 932, III, do Código Civil https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10677442/inciso-iii-do-artigo-932-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 ↩︎