Entre o LP e o Algoritmo: Supremo Debate o Futuro dos Direitos Autorais na Era do Streaming

Por Silvana de Oliveira  Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense

O STF analisa o caso Roberto e Erasmo Carlos x Fermata e reacende a discussão sobre contratos antigos, remuneração justa e o papel dos artistas em um mercado dominado por dados e plataformas digitais.

Processo: ARE 1542420 — Roberto Carlos e Espólio de Erasmo Carlos x Editora Fermata do Brasil

O Supremo Tribunal Federal se tornou palco de um dos debates mais emblemáticos sobre direitos autorais na era digital, em uma audiência pública conduzida pelo ministro Dias Toffoli, relator do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (ARE 1542420). O caso, movido por Roberto Carlos e pelo espólio de Erasmo Carlos, questiona a validade e os efeitos de contratos firmados entre 1964 e 1987 com a Editora Fermata do Brasil, à luz das novas formas de exploração musical — em especial, o streaming.

Do Vinil ao Streaming: o conflito entre eras

Os artistas sustentam que os contratos originais refletiam um modelo industrial analógico — LPs, fitas e CDs — que não previa a distribuição digital. Para eles, a exploração via plataformas como Spotify e YouTube representa uma nova modalidade de uso, não autorizada nem remunerada de forma transparente. Assim, pedem a rescisão contratual e a declaração de inexistência dos direitos da editora sobre essas execuções.

A defesa argumenta ainda que, mesmo que se reconheça a validade dos contratos da época, a Fermata descumpriu obrigações legais ao permitir o uso das músicas sem prestação de contas adequada e sem métricas auditáveis sobre o número de execuções.

O desafio jurídico: segurança dos contratos x atualização tecnológica

O cerne da controvérsia vai além da disputa individual. Está em jogo o equilíbrio entre a segurança jurídica dos contratos antigos e a necessidade de adaptação das relações autorais ao ambiente digital.

Toffoli, ao conduzir a audiência, chegou a considerar a possibilidade de retirar a repercussão geral — o que limitaria os efeitos da decisão apenas às partes do processo, evitando impacto generalizado sobre o setor musical.

A doutora Karin Grau Kuntz, especialista em Direito pela Universidade de Munique, sintetizou a complexidade do tema:

“As plataformas de streaming são um terceiro elemento, alheio ao que foi contratado lá atrás. É uma nova estrutura de exploração econômica.”

Kuntz destacou que, no modelo atual, o consumidor paga pouco, mas o autor subsidia o sistema — já que a mercadoria passou a ser a atenção do usuário, e não mais a obra em si. A música se transforma, portanto, em insumo para um segundo negócio: o da coleta e monetização de dados.

Streaming: democratização ou ilusão de acesso?

Representando a Digital Media Association (DIMA), Mauro Augusto Ponzoni Falsetti defendeu que o streaming democratizou o acesso à música e aumentou as oportunidades para artistas, apontando que o setor movimentou US$ 29,6 bilhões em 2024, sendo 70% da receita destinada ao pagamento de direitos autorais e fonográficos.

Contudo, essa democratização é contestada por artistas e juristas, que apontam opacidade nos critérios de remuneração, dificuldade de auditoria e ausência de métricas padronizadas — o que, na prática, reduz a transparência e o controle autoral.

O advogado Bérith Lourenço Santana, defensor de Roberto e Erasmo, foi direto:

“Tentar impor a lógica da posse numa sociedade de acesso é aplicar a lei de um império que não existe mais. O artista quer transparência — é isso que o mundo discute hoje.”

🧾 O contraponto das editoras e da indústria

Do outro lado, o advogado Fernando José Gonçalves Acunha, representante da Fermata, sustentou que não houve violação aos direitos autorais e que o caso é infraconstitucional, centrado na proteção ao ato jurídico perfeito. Segundo ele, a empresa também tem interesse em melhorar a remuneração dos artistas, já que sua receita depende dos mesmos percentuais.

Paulo Rosa, presidente da Pro-Música Brasil, acrescentou que as plataformas fornecem relatórios de execução, mas que a complexidade dos dados exige análise técnica sofisticada.

“Um demonstrativo pode ter de 10 a 15 mil linhas. É um acompanhamento minucioso.”

Ele alertou que a decisão do STF exigirá “calibragem cuidadosa” para não desestimular investimentos no mercado musical e preservar a previsibilidade e segurança jurídica.

Uma nova era para o Direito Autoral

Para Letícia Provedel, advogada do cantor Gilberto Gil, o caso simboliza o choque entre dois mundos — o da era do rádio e o da conectividade.

“Os contratos foram firmados em 1960, na era do rádio. O streaming é uma nova era.”

Ela ressaltou que a gestão autoral moderna é mais autônoma, o que reduz a necessidade de intermediários e exige revisão das antigas estruturas editoriais.

A audiência no STF evidencia que o Direito Autoral está diante de um momento de transição paradigmática. A economia da atenção substituiu o modelo de posse, e a música tornou-se vetor de dados e de algoritmos. Entre a segurança dos contratos antigos e a justiça remuneratória dos artistas, o desafio do Supremo é encontrar um ponto de equilíbrio que preserve a segurança jurídica sem engessar a evolução tecnológica.

Ao encerrar a sessão, Dias Toffoli1 reconheceu a relevância do debate:

É impossível saber de tudo. Foi uma audiência importante para compreender a realidade cotidiana dessa área que precisamos julgar.”

  1. Fonte: https://www.jota.info/stf/do-supremo/direitos-autorais-audiencia-no-stf-debate-seguranca-dos-contratos-e-remuneracao-dos-artistas ↩︎