Por Silvana de Oliveira – Perita Judicial, Grafotécnica, Especialista em Provas Digitais e Investigação Forense
A absolvição de um homem condenado a 16 anos de prisão por estupro de vulnerável1 contra a própria filha, após a vítima admitir que mentiu durante o processo, reacende um debate sensível e necessário sobre os limites da verdade processual, a produção da prova penal e os efeitos irreversíveis de um erro judiciário. O réu, que passou oito meses preso na Penitenciária Estadual de Charqueadas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi solto após a retratação da filha, hoje adulta, que afirmou ter sido induzida pela mãe a denunciar o pai quando tinha apenas 11 anos.
O caso chama atenção não apenas pela gravidade da imputação um dos crimes mais severamente punidos pelo ordenamento jurídico brasileiro , mas também pelo longo percurso processual. As acusações foram reiteradas ao longo de mais de dez anos, período em que o sistema de Justiça consolidou uma narrativa acusatória que culminou em condenação e efetiva privação de liberdade. A retratação só ocorreu quando a suposta vítima tomou conhecimento da prisão do pai, em abril de 2025, momento em que, segundo seu depoimento, compreendeu a dimensão real das consequências de suas declarações.
A fala da filha do réu é emblemática: ao relatar que a mãe queria “dar um susto” no pai e que jamais imaginou que a situação “chegaria nesse nível”, expõe-se um fenômeno complexo, no qual conflitos familiares, assimetrias de poder e instrumentalização da palavra da criança se entrelaçam. O processo penal, que deveria funcionar como um filtro rigoroso da verdade possível, mostrou-se vulnerável à repetição de versões não suficientemente confrontadas por outros elementos probatórios.
Do ponto de vista jurídico, o caso revela fragilidades importantes. Crimes contra a dignidade sexual, especialmente quando envolvem crianças, exigem do Estado uma atuação firme e protetiva. Contudo, essa necessária sensibilidade não pode afastar princípios estruturantes do processo penal, como o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência. A palavra da vítima é relevante, mas não pode ser tratada como prova absoluta, imune à crítica e à verificação técnica, sobretudo em processos longos, nos quais memórias podem ser reforçadas, moldadas ou mesmo induzidas.
Há também impactos que extrapolam o processo. Para o homem absolvido, os oito meses de prisão representam apenas a parte visível de um dano muito maior: estigmatização social, ruptura de vínculos familiares, abalos psicológicos e prejuízos profissionais dificilmente reparáveis. Para a Justiça, permanece o desafio de lidar com a responsabilização do Estado por condenações indevidas e com a necessidade de aprimorar protocolos de escuta, avaliação pericial e análise probatória em casos dessa natureza.
Ao mesmo tempo, o episódio não pode ser utilizado para desacreditar vítimas reais de violência sexual, que historicamente enfrentam descrédito, medo e silêncio. Casos de retratação tardia são exceções, mas exceções que exigem reflexão profunda. O equilíbrio entre proteção da vítima e garantia de direitos do acusado é delicado, e sua quebra, em qualquer direção, compromete a legitimidade do sistema penal.
Em última análise, o caso evidencia que a Justiça não pode se contentar com verdades formais construídas ao longo do processo sem permanente vigilância crítica. Quando a verdade real emerge tarde demais, resta ao Estado reconhecer suas falhas, reparar danos e, sobretudo, aprender com o erro para que novas condenações não se apoiem em fundamentos frágeis. O custo humano de uma decisão equivocada é alto demais para ser tratado como efeito colateral aceitável do sistema.
- Filha diz que mentiu sobre estupro do pai: “Dar um susto”
Mulher disse que foi induzida pela mãe a mentir https://pleno.news/brasil/cidades/filha-diz-que-mentiu-sobre-ser-estuprada-pelo-pai-dar-um-susto.html?utm_source ↩︎
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